No primeiro século do mundo mediterrâneo, o divórcio e o recasamento eram comuns, exceto entre os judeus. Jesus usou em especial linguagem forte para condenar a prática. Em Mateus 5,31-32, Ele diz “Também foi dito: ‘Quem se divorciar de sua mulher, dê-lhe uma certidão de divórcio’. Eu, porém, digo-vos: todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por causa de fornicação, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a mulher divorciada comete adultério.” Similarmente, em Mateus 19,9, Ele diz“Por isso digo-vos: quem se divorciar da sua mulher,a não ser em caso de fornicação, e casar com outra, comete adultério” (ênfase adicionada).
Muitos protestantes se agarram nestas chamadas “cláusulas excepcionais” para legitimar o divórcio em casos onde um dos esposos cometeu adultério ou se envolveu em algum tipo de pecado sexual.
Há uma porção de problemas com isso. Primeiro que entre eles as cláusulas excepcionais não aparecem nas passagens paralelas em Marcos e Lucas. Em Marcos 10,11-12, Jesus diz somente “O homem que se divorciar de sua mulher e se casar com outra comete adultério contra a primeira mulher. E se a mulher se divorciar do seu marido e se casar com outro homem, ela comete adultério.” Da mesma maneira, Lucas 16,18 diz “Todo o homem que se divorcia da sua mulher e se casa com outra, comete adultério; e quem se casa com uma mulher divorciada do seu marido comete adultério”.
Isto é surpreendente. Como poderiam Marcos e Lucas, escrevendo para o mundo greco-romano, omitir a única, evidente exceção que permite o recasamento após o divórcio? O adultério e pecados sexuais foram descontroladamente crescentes na cultura romana. Marcos e Lucas teriam percebido que seus públicos precisavam saber sobre a exceção até mais do que o público judeu ao qual Mateus escreveu.
As cláusulas excepcionais também não aparecem na discussão de Paulo sobre o divórcio e o recasamento. Em Romanos 7,2-3, ele escreve que “a mulher casada está ligada por lei ao marido enquanto este vive; mas, se ele morre, ela fica livre da lei conjugal. Por isso, enquanto o marido está vivo, se ela se tornar mulher de outro homem, será chamada adúltera. Mas, se o marido morre, está livre em relação à lei, de modo que não será adúltera se casar com outro homem.”
E em 1 Coríntios 7,10-11, 39, ele escreve “Aos que estão casados, ordeno. Aliás, não eu, mas o Senhor: a esposa não se separe do marido; e caso venham a separar-se, não se case de novo, ou então reconcilie-se com o marido. E o marido não se divorcie da sua esposa... A esposa está ligada ao marido durante todo o tempo em que ele viver. Se o marido morrer, ela ficará livre para casar-se com quem quiser; mas apenas no Senhor.”
Paulo também estava lidando com um público greco-romano, e ele também não faz uma exceção para a infidelidade ou pecado sexual. (A única exceção que ele faz é para a dissolução de um casamento não sacramental quando um esposo se converteu ao Cristianismo [1 Cor 7,12, 15] – o que conhecemos hoje como privilégio paulino – mas é um assunto diferente.)
Como as cláusulas excepcionais ocorrem apenas no Evangelho de Mateus – escrito para um público judeu – sugere-se que ele reflita algum tema de interesse particular aos judeus. O que poderia ser?
Uma possibilidade é que as cláusulas excepcionais estão lá como uma ilustração da precisão requerida na lógica rabínica. Em outras palavras, as cláusulas indicam que se alguém se divorcia de uma mulher adúltera, não está cometendo adultério porque ela já é uma adúltera. Isso não significa que ela esteja livre para recasar; apenas significa que você não a está forçando a uma situação adúltera se você se divorciar dela.
Uma outra possibilidade é que as cláusulas excepcionais são uma maneira de evitar de todo um assunto de um esposo impuro. No Judaísmo em torno deste período, havia um debate entre a escola de Hilel e a escola de Shamai sobre as circunstâncias sob as quais alguém poderia se divorciar. Os hilelitas argumentavam que poderia ser essencialmente por qualquer razão, enquanto os shamaítas argumentavam que poderia ser somente por adultério. As cláusulas excepcionais poderiam ser um caminho de evitar esse debate. A gramática grega permite que a passagem seja entendida aproximadamente neste sentido: quem se divorciar da sua mulher, eu não vou entrar no assunto da impureza, e casar com outra, comete adultério.
Uma terceira possibilidade é que o termo grego usado para “impureza” – porneia – está sendo usado num sentido especial. Por exemplo, alguns o têm tomado para se referir ao comportamento infiel antes de que o casamento seja consumado. Neste ponto, é possível dissolver o casamento, porque os casamentos se tornam indissolúveis somente quando são consumados.
Hoje, com a tradição do casamento noturno, é altamente improvável que um esposo possa ser infiel entre a cerimônia do casamento e a consumação. No entanto, no tempo de Jesus, era usual para um casal ser legalmente casado por cerca de um ano antes da consumação. A esposa continuava a viver com a sua família e amigos os acompanhando. Então, durante a festa de casamento, o casal se afastaria e consumaria a sua união. Claramente, neste longo tempo a impureza era possível por parte de um dos esposos.
Por que Mateus seria o único evangelista a apontar a possibilidade de tais uniões? Porque ele é o único que menciona isso, quando Maria foi descoberta estar com uma criança pelo Espírito Santo, José tinha em mente divorciar-se dela quietamente (Mt 1,19). Ele sozinho pareceria ter uma razão para clarificar por que o curso de ação de José foi legitimado, dado o que Jesus disse mais tarde concernente ao casamento.
Outros têm interpretado o termo grego usado para “impureza” – porneia – como uma referência ao incesto, a ideia de que o divórcio e o recasamento seja permissível no caso de casamentos incestuosos, visto que o casamento nunca foi válido de início. Se isso é correto, então temos o princípio subjacente a anulações modernas: aqueles que não são validamente casados estão livres para contraí-lo.
Os advogados desta interpretação apontam que porneia não é o termo grego usual para adultério. De fato, nas passagens citadas acima, Jesus usa o termo para adultério (moicheia) e não o identifica com porneia. Esses advogados apontam também que muitos povos na região leste do mediterrâneo tinham práticas de casamento que permitiam uniões proibidas por Levítico 18. Isso causava problemas quando indivíduos queriam se converter ao Judaísmo e ao Cristianismo. Eles deveriam deixar seus esposos? Mateus, escrevendo em um contexto de leste mediterrâneo, teria tido razão para inserir uma clarificação para prevenir tais convertidos de usarem a declaração desqualificada como justificação para ficarem com seus esposos atuais.
A ideia de que porneia está sendo usada desta maneira estreita é sugerida por duas outras passagens bíblicas. Em Atos 15,29, é proposto que, para evitar ofender os crentes judeus, os gentios convertidos se abstenham de comer carne de ídolo, sangue, animais sufocados, e deporneia. Essas objeções são frequentemente consideradas como sendo baseadas diretamente em Levítico 17-18, onde as mesmas coisas são proibidas na mesma ordem.
A segunda passagem é 1 Coríntios 5,1, onde Paulo aplica a palavra porneia ao caso de um homem que se casou com sua madrasta – um caso proibido por Levítico 18,8. Essas considerações tornam razoável assumir que porneia está sendo usado nas cláusulas excepcionais para se referir a uniões incestuosas.
Sejam quais forem os argumentos acima que você ache convincente, é claramente falso que Jesus quis permitir o divórcio e o recasamento quando uma parte cometeu adultério. Mateus 19,9 tem sido lido frequentemente contra o contexto do debate Hilel-Shamai e interpretado para significar que Jesus estava simplesmente tomando partido com Shamai, permitindo o divórcio somente para adultério. Mas isso não se encaixa com dois pontos-chaves no texto.
Primeiro, 19,3 diz especificamente que os fariseus estavam tentando testar Jesus, e ele usa uma palavra grega – peirazo – que os Evangelhos sinóticos usam para indicar um ato de malícia. Mesmo John P. Meier, um liberal bíblico, nota “Se os fariseus estão simplesmente perguntando a Jesus se Ele é a favor da opinião de Hilel ou de Shamai, como isso constitui um atentado malicioso para forçá-lo a um dilema pelo qual uma ou outra escolha envolveriam uma declaração danosa? Depois de tudo, ambas as opiniões rabínicas são perfeitamente respeitáveis.” (The Vision of Matthew, 252)
Segundo, a resposta de Jesus é tão surpreendente que em 19,10 os discípulos declarem que seria melhor não casar se o que Jesus disse é verdadeiro. Meier de novo: “Esta não é uma reação à bem conhecida posição de Shamai, a qual dificilmente conduziria um judeu ou qualquer outra pessoa a tal conclusão. Mateus tem os discípulos reagindo todos bastante humanamente à total proibição de divórcio de Jesus.” (ibid., 253)
Finalmente, “se Mateus estivesse tomando o adultério como fundamento para o divórcio, ele logo correria ao encontro de graves dificuldades práticas. Nesta hipótese, Mateus permitiria o divórcio e o recasamento para um marido e mulher que tivessem cometido adultério. Mas um marido e mulher que permanecessem fiéis um ao outro não seriam permitidos de se divorciarem; de fato sua tentativa de divórcio seria considerada adultério. Obviamente, a única coisa a fazer para um casal cristão fiel que quisesse um divórcio seria cometer adultério, depois do qual uma dissolução do casamento seria permitida. Encerramos com divórcio a pedido, com uma condição técnica de cometimento de adultério. Isso tudo constitui uma disciplina estranha da igreja, uma na qual o adultério parece encorajado e a fidelidade desencorajada.” (ibid)
A situação que Meier descreve é na verdade encontrada em muitas igrejas protestantes. Qualquer conselheiro evangélico experiente pode atestar que muitos evangélicos que se encontram em situações maritais difíceis cometem tais pecados especificamente para propósitos de poderem se divorciar e recasar. Eles podem dizer a si mesmos “Jesus me perdoará depois.” ou “Eu já fui perdoado por todos os meus pecados – incluídos os futuros.” Através deste buraco, o Evangelicalismo absorveu a ética de divórcio e recasamento do mundo secular, assim como absorveu a mentalidade contraceptiva do mundo secular.
Felizmente, em anos recentes todas as opções interpretativas mencionadas acima têm encontrado advogados em círculos protestantes conservadores. O tempo irá dizer se este novo reconhecimento da seriedade do ensinamento de Jesus sobre o divórcio e o recasamento comportará fruto significante.
Traduzido para o Veritatis Splendor por Marcos Zamith. Original em inglês:http://www.catholic.com/thisrock/2000/0007bt.asp
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