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domingo, 28 de abril de 2013

O nascimento da Igreja - A. D. Sertillanges


 
A Igreja, em Deus, é eterna – primeiro pensamento incluso no Verbo que será um dia o seu chefe, primeiro amor no Espírito que um dia lhe será a alma.

Em Cristo, o homem universal, a Igreja é também universal e, por conseguinte, onitemporal. Mas essa existência que atravessa todos os tempos não se manifesta nelas sempre da mesma maneira. Há um centro de atração que faz convergir os seus diversos estados para isso a que, com S. Paulo, chamamos de plenitude dos tempos, a saber, a vida histórica de Cristo, distinta da sua vida intemporal ou de influência.

Antes do seu nascimento, preparava-se e esperava-se o Cristo; depois, a humanidade vive dEle e desenvolve-lhe a obra. Assim com a vida religiosa, hoje em dia, não seria o que é se Cristo não tivesse vindo, assim também a vida religiosa dos séculos antecristãos não teria sido o que foi se Cristo não devesse ter vindo. E, enfim, já que tudo se subordina a essa obra, pode-se dizer que Cristo criou a história tanto para o passado como para o futuro. Sucede como se “no oceano das idades” – como teria dito o nosso Lamartine, - houvesse caído um imenso rochedo. A ondulação prossegue nos dois sentidos, e todo o mar vibra, sob a luz repercutida pelos milhões de espelhos que são as consciências dos homens.

Tal é o ponto de vista que desenvolvíamos no capítulo precedente, e que nunca se deve esquecer quando se trata da Igreja. O cristão individual tem toda razão de se lembrar disso, pois também é homem de todos os tempos, enraizado no Antigo Testamento, desabrochado no Novo, homem de hoje, de ontem e de amanhã, pelo simples fato de ser da Igreja.

Deixando agora de lado os efeitos retroativos da vinda de Cristo, temos de lhe estudar os efeitos imediatos, enquanto aguardamos os seus efeitos ulteriores.

Esta maneira de exprimir-nos mostra em que sentido se deve tomar o nosso título “O nascimento da Igreja”. Não se trata de um começo absoluto, como se, antes, a Igreja absolutamente não houvesse existido. De certa maneira, ela existia em alma e em corpo. Em alma, visto como o Espírito, que lhe faz todo o valor, trabalhava; em corpo, visto como o embrião judaico, concedido ao banho nutritivo das civilizações religiosas ou seculares do mundo antigo, era bem autenticamente o seu corpo antecipado.

Não era isso uma razão para que a Igreja não tivesse de nascer. Nós também nascemos depois de termos vivido no seio de nossas mães e fincado as nossas origens no coração das gerações.

Cristo, dado ao homem por uma vontade eterna, vontade que tivera consequências espirituais desde sempre, e mesmo, não me posso cansar de repeti-lo, consequências históricas, o próprio Cristo, digo, desta vez ia revestir a existência histórica, surgir das suas preparações e encetar o futuro.


Foi em Belém, numa manjedoura de ruminantes, sob um abrigo de natureza em pleno céu, em face de uma planície constelada de humildes fogos, porém dominada por aqueles outros fogos que Abraão contemplava como símbolos de sua raça, foi aí que, premido pelo amor, propondo-o Deus e aceitando- o homem na pessoa de uma pureza e de uma humanidade todo-poderosas, foi aí que o fruto maduro da história aí irrompeu. O grão do futuro, a esperança alimentada pelos séculos lá estava, sob a forma de uma criança que uma mãe, fecunda por obra do Espírito universal, amamentava.

Esse seio de virgem não era porventura a figura da humanidade em trabalho, elaborando uma comida que o Cristo coletivo, a Igreja, absorveria em breve, para crescer? Enquanto isso, o minúsculo Filho do Homem vivia dessa comida, ele primeiro de seus irmãos, diz o Apóstolo, primeiro a ser nutrido da medula do passado, humanidade nova e antiga por ele só, a título de Filho do Homem, a título de segundo Adão, mas trazendo em si o que podia renovar, já que criara, trazendo em si a plenitude da própria divindade.

Por toda parte a humanidade procurava outrora o seu Deus: nesse dia, se seus olhos pudessem ter-se aberto, ela o teria contemplado em si mesma. Esse Deus, que a envolvia desde sempre de uma influência ativa, mas parcial ainda e pouquíssimo reconhecida, furara um ponto “a parede” (Ezequiel, VIII, 8); irrompera a massa humana e, pela deificação pessoal de um de nós, começava a operar a deificação coletiva.

Os potentados da antiguidade, quer se chamassem Ptolomeu, Antíoco, Augusto ou mesmo Nero, viam anunciar e saudar o nascimento deles como o inicio de uma idade áurea, como o penhor de uma felicidade a vir sobre a terra. Aqui, a verdade substitui-se às ficções, e a idade de ouro eterna, definida pela síntese de Deus e do homem na religião autêntica, acaba de achar o seu instrumento substancial. Jesus será o ponto de ligação, o elo intermediário, semi-humano, semi-divino, que unirá o que se trata de unir. Como repreender-se-á que ele diga em seguida: “Ninguém vem ao Pai senão por mim” (João, XIV, 6), e reciprocamente: “Ninguém pode vir a mim se meu Pai não o atrair” (João VI, 44).

O nascimento da Igreja será, pois, de certo modo, o nascimento de Cristo, visto haver identidade solidária entre o grupo organizado e Aquele que é estabelecido espiritualmente chefe de raça. “O Estado sou eu”, dizia Luiz XIV; com mais verdade poderá Cristo dizer: a Igreja sou eu; não entendendo isto da sua humanidade individual, mas de todo o corpo de que a sua humanidade é a cabeça.

Mister se fará apenas que esse corpo de Cristo, como efetivamente lhe chama São Paulo, esse Cristo desabrochado em grupo, socializado, ache suas condições definitivas. Até então ele vivia em estado difuso no paganismo e em estado embrionário no judaísmo: tratar-se-á, como dirá mais tarde S. João, de congregar em um os filhos  de Deus dispersos (João, XI, 52).

Repito, havia filhos de Deus em toda parte. As Igrejas nacionais ou domésticas ofereciam-lhes abrigos provisórios; a sinagoga fornecia-lhes uma representação e um ponto de concentração, oficial desta vez, mas insuficiente, porque unia mal; unia só pouca gente e em condições que não eram exclusivamente religiosas, já que era preciso filiar-se ao povo, por uma espécie de naturalização, para se filiar ao culto. Derrubar esse templo para substituí-lo pelos domínios do Espírito de que o templo cristão será o servo e o símbolo, eis a obra.

“Vem a hora, diz o Salvador à Samaritana, em que não será nem sobre esta montanha nem em Jerusalém que adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos Judeus. Mas vem a hora, já veio, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade” (João, IV, 21-25). Achamos aí, em três tintas justapostas, todo o mapa religioso do mundo: a religião dos pagãos, em que se erguem templos de ocasião, adoradores daquilo que ignoram (o Deus ignoto de S. Paulo); a região judaica, onde o edifício salomônico abre suas portas ao verdadeiro Deus, mas fecha seus muros ao mundo; finalmente a região cristã, onde o templo aberto ao espiritual, às dimensões do universo, já não passará, materialmente, de um símbolo e de um auxílio.

Compreende-o a arte cristã quando, na medida do possível, sintetiza no templo cristão ideal, que é a Catedral, a criação em todos os seus domínios. O templo eucarístico é tanto mais templo quando melhor se parece com esse cosmos divino em que toda criatura unida a Cristo adora em espírito e em verdade.

Vem a hora, diz o nosso texto e já veio. Que quer isso dizer? Quer dizer que, estando lá Cristo, já veio, nele, a hora de tudo o que deve ser. Essa hora veio desde Belém. Vem, entretanto, porque essa existência de Cristo, que inclui em si a obra universal, ainda não se tornou uma ação e não está coroada pelo dom supremo.

Eis, porém, que Belém restitui a Nazaré o seu tesouro. Tendo-o visto crescer em sabedoria e em idade diante de Deus e diante dos homens (Lucas, II, 52), Nazaré passá-lo-á a Cafarnaum, a Betsaida, a Tiberíades e às outras cidades galileias. A Galileia, infiel, cedê-lo-á a Jerusalém, que o crucificará fora dos muros, como que para simbolizar a universalidade do seu sacrifício. Enquanto isso, a vida oculta desenrola-se, porque convém que a obra individual de Cristo se prepare no silêncio e na obscura meditação, como a obra coletiva que ele enceta na noite dos séculos.

Daí, tal como das profundezas do silêncio noturno se lança pela manhã o sol, o “noivo eterno” da humanidade deixará a sombra nupcial para correr a sua carreira.

Como sempre, ele começa pela provação. Hércules entre o vício e a virtude é símbolo universal. Isento de toda tendência para o mal, Jesus nem por isso deixa de ser sujeito, como todos, aos assaltos do mal. O mal, para ele Cristo, seria esquecer-se de que é Cristo, isto é, homem de todos, e trabalhar para si mesmo. “Faze que estas pedras virem pães”: atira-te do alto do templo, e apare-te o teu Deus; conquista, visando uma realeza pessoal: tal é a tentação de Cristo.

Mas não! O homem do Reino de Deus, que é universal, deve guardar para obra universal o poder que dispõe. O homem do Reino de Deus, que consiste em se unir a Deus, deve consultar a Providência, em vez de lhe impor seus caprichos. O homem do Reino de Deus, que é interior, não deve comportar-se como conquistador, como se o Reino fosse deste mundo. O Reino é neste mundo que lhe impõe as suas condições; é neste mundo como no outro, na terra como no céu, visto que orienta o destino total; mas não é deste mundo, não detendo suas ambições sobre os objetos das nossas preocupações temporais e excluindo o mal.

Após essa tríplice prova simbólica, o tentador é enxotado com a tentação, e a natureza do reino de Deus na terra, tal como deverá realizá-lo a Igreja, é fixada. Jesus vai pregá-lo. O seu batismo à beira do Jordão é que lhe dá a sua consagração de pregador.

Escutai-o, diz a Voz, e sinais visíveis oferecem como que o aparato de uma sagração. Ele foi sagrado pelo Espírito Santo e pela virtude de Deus diz São Pedro (Atos, X, 38). Essa virtude revela-se nas pregações de dois anos e meio, mal três, num minúsculo teatro, ao qual se têm emprestado encantos assaz incertos.

Tem-se sonhado muito sobre essa Galileia que não ousa mais viver, que se consola de haver perdido o seu Deus rolando sobre as rochas onde ele pregava ondas de verdura, e retraçando com loureiro em flor o sulco da sua barca que ia de margem em margem. Mui diversa foi, porém, a realidade no tempo de Jesus. A pregação do “rabi nazareno” não é a pastoral que Renan descreveu; é um labor áspero, numa áspera terra, no meio de campônios secos, supersticiosos, violentos, que após um momento de entusiasmo querem precipitar o seu profeta do alto de um rochedo, depois fazê-lo rei, depois fazê-lo seu provedor, depois, que sei? E que acabam por obrigá-lo a ir-se embora com um adeus de maldição.

Não importa. Sabemos que a literalidade dos acontecimentos tem na vida de Jesus uma importância imensa, mas no final das contas secundária. Essa vida é um símbolo, símbolo real e ativo, sacramento cujo alcance excede infinitamente o alcance dos fatos materiais em que se apoia. O Sermão da Montanha sem dúvida é pronunciado perante algumas centenas de pessoas: nem por isso deixa de se dirigir ao universo, e é por este ouvido. A semente lançada sobre os rochedos acha logo de início algumas fendas onde germinar, e o resto ressalta para ir fecundar a terra.

É notável que Jesus não tenha procurado sair de seu pequeno país. Confinou-se num espaço que se atravessa em dois dias de marcha. Seus primos lhe diziam: Se fazes tais coisas, mostra-te ao mundo! (João, VII, 4). Era o clamor da evidência. Mas ele não escutava nada dessa pretensa sabedoria. Abordava o universo por um ponto, sabendo que o fluido divino saberia passar desse ponto a todos os outros.

O mundo não é assim tão grande. O verdadeiro obstáculo à ação moral não são as distâncias. Um mínimo de tempo e de espaço basta ao Salvador para conquistar o tempo e o espaço em toda a sua amplitude. Um ponto que se move com velocidade infinita ocupa a imensidade, observa Pascal: é o caso de Cristo exercendo a sua atividade celeste. Um ponto segundo a extensão, a imensidade como zona de influência.

Os homens tratam de durar e estendem-se o mais possível, porque têm apenas os seus dias medidos e a sua estatura para se igualarem à sua obra: Cristo dispõe da estatura de Deus e da duração de Deus: não necessita estender-se. Ele é, e isto basta; ele diz, e sua palavra acha o seu caminho por si mesma. A sua vida histórica está para com a sua vida segundo o espírito em mera proporção infinitesimal. Galileu e pregador de três anos, é o bastante; todo o plano religioso universal tem aí suas ligações.

O Mestre prega pois, e o que ele diz é a Boa Nova, assinalando a ideia central da sua obra.

A essência do cristianismo, sobre ela muito se há dissertado; não é sem razão, conquanto seja às vezes de maneira a mais desarrazoada. Está aí, com efeito, o tudo da Igreja, visto ser a sua ideia vital. A ideia vital é o tudo de um vivente; é a lei de toda a sua atividade; a não ser o caso de desvio acidental, ela torna a achar-se em tudo o que ele faz como em tudo o que ele é; é a sua “alma”. Isso a que chamamos alma, esse princípio interior da nossa unidade e da nossa orientação ativa, outra coisa não é senão uma ideia, real e substancial, ideia, dirá Claude Bernard, diretiva de todas as manifestações da vida.

Na Igreja, segundo a teologia católica, alma é o Espírito Santo. Mas ainda assim cumpre saber sob que forma o Espírito Santo entende de se dar a nós na Igreja. Não sucede com essa alma, alma universal e transcendente a todas as coisas, como sucede com uma alma individual, que se proporciona exatamente àquilo que ela move. O Espírito Santo nos excede e acha em nós um mero domínio parcial. Demais, se ele nos penetra, é sem nos absorver, ao passo que a alma individual absorve na unidade de uma substância indivisa aquilo que ela anima. Resta, pois, a questão de saber o que é que o Espírito divino quer de todos nós, constituídos em Igreja, e o que é que nos traz. É isso, propriamente, o Evangelho.

O Evangelho, a Boa Nova, é assim chamada a priori, porque um desígnio divino é, por essência e inevitavelmente, um desígnio de amor. A não ser que o homem o estrague! Mas trata0se aqui do desígnio primeiro, e a este nível, não intervindo nenhuma defecção, o amor e a felicidade só se separam se, entre os dois, desfalecesse o poder.

E qual é a boa nova anunciada? É que o homem, desde sempre, foi chamado à intimidade divina; que esse desígnio, longamente desconhecido, vai ser reatado e acha seu cumprimento decisivo na pessoa de Cristo “princípio” e “pedra de ângulo”, “caminho, verdade e vida” (Cf. João VIII, 25; Mt, XXI, 42; João, XIX, 6). Trata-se, pois, ao mesmo tempo, de uma intenção divina e de um fato divino; trata-se, em consequência, de uma ação, de uma lei, de um sistema de meios, e, necessariamente, de um ambiente apropriado à fecundidade do fato, à aplicação da lei, à utilização dos meios, à realização da intenção inicial.

No tempo, o advento de Jesus abre a fase definitiva do reino de Deus; o seu segundo advento deve encerrá-lo, julgar-lhe os efeitos e eternizar-lhe os fins.

Jesus traz o levedo que fará fermentar a massa humana; cultiva um campo onde brotará também joio; lança uma rede que apanhará peixes bons e maus, enquanto não vem a separação. E isto quer dizer que ele se propõe, e poupa as liberdades.

Quanto ao essencial, a saber, espiritualmente – pois Deus é Espírito e suas obras são, antes Ed tudo, obras de espírito -, o reino de Deus está em nós desde que nos demos a Deus e à obra de Deus sem restrição pecaminosa. Historicamente, visivelmente, o reino de Deus será estabelecido desde essa primeira geração (Mt XXIV, 34), porquanto o grão será semeado, Cristo provado, a sociedade fundada, o Espírito difundido e os sinais fornecidos: ressurreição de Jesus, ruína de Jerusalém e abolição do antigo reino provisório.

Para entrar no reino, o que antes de tudo é necessário, por oposição ao judaísmo carnal, são as disposições do coração. Importa primeiro compreender-se a si mesmo, ter consciência da sua natureza real e completa. “Reconhece, ó cristão, a tua dignidade”, dirão os nossos Padres. Em seguida, é preciso rematar-se, seja como indivíduo, seja como grupo. Enfim e desde o inicio, a fim de se compreender deveras e de se realizar plenamente, o homem é chamado a ultrapassar-se para entrar em sociedade intima com o Pai, o Filho e o Espírito.

Compreender-nos é sabermos que, nascendo na terra, somos um ser de essência celeste: homo coelestis (I Co XV, 47); que, sujeito ao tempo, somos um ser de eternidade.

Realizar-se, rematar-se, é, como indivíduo, dirigir o seu desenvolvimento no sentido daquilo que faz alcançar o seu fim, e, já que somos celestes, desenvolver em nós o celeste; já que somos feitos para a eternidade, preparar em nós a eternidade, preferindo a todos os valor que perecem no tempo os valores eternos: Homens carnais, não busqueis o pão que perece, mas o pão que fica para a vida eterna (Jo VI, 27). E, como grupo, realizar-se é elevar-se até à consciência da sua unidade e tirar daí as consequências: amor mútuo, amor organizado, justiça fraterna que superabunde em relação à justiça dos pagãos e em relação à pretensa fraternidade, que não passa de uma coesão dos nossos pós. Pai, que eles sejam um como nós. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, sejam eles também um em nós. (Jo XVII, 11, 21).

Enfim, ultrapassar-se, por uma vida em comum com seu Princípio, é aceitar a graça e merecer-lhe o crescimento. Se alguém me ama, meu Pai também o amará, e nós viremos a ele e faremos nele a nossa morada (Jo XIV, 23). Porém primeiro, se vós me amais, observai meus mandamentos (Jo XIV, 15). E por isto sobretudo, por isto essencialmente, se reconhecerá que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros (Jo XIII, 35).

Essa habitação misteriosa do divino em nós, juntos, esse renascimento em Deus de todo o grupo humano, é que prepara e permite a ascensão inaudita de um pequeno ser ao contato imediato do seu Princípio, e essas sublimes intuições que são o fundo da vida celeste prometida. “A vida eterna é que eles te conheçam, a ti único Deus verdadeiro, e Aquele que enviaste” (Jo XVII, 3).


Mostrar tudo isso, em minúcia, nas palavras de Jesus – sentenças, discursos ou parábolas -, não temos que vagar para tanto; mas, pelos nossos apóstolos, pelos nossos Padres e pelos nossos teólogos, sabemos que nelas se acha a substância disso³.

Dissemos que o passado tinha feito prevê-lo e olhe preparara o desabrochar: por isso Jesus se refere muitas vezes ao passado, embora assinalando as diferenças. Faz ressaltar o que há de bom nos meios pagãos, exaltando o publicano virtuoso e o Samaritano caridoso. Abstém-se de condenar a lei, dizendo que vem apenas aperfeiçoá-la. Superior a Moisés, nem por isso deixa de lhe ser o continuador, e, se pode levá-lo mais longe, é que o coração duro dos homens foi amolecido lentamente pela penosa experiência da sua impotência. Agora, o progresso vai declarar-se. O que o mundo pagão autorizava, Jesus condena; o que Moisés concedia à dureza dos corações, Cristo recusa-o.

A ação divina no mundo é de uma continuidade que a sua matéria condiciona e perturba frequentemente, mas que tende a subir. Já que hoje os tempos estão maduros pra uma transformação profunda, cumpre organizar os méis desta. Faz-se mister uma alma nova aos humanos, ei-la: O Espírito do Evangelho. Mas, para que essa alma trabalhe, é preciso, como dissemos, que organize para si um corpo. Sucedendo ao corpo plasmático das antigas organizações, ao corpo embrionário constituído pela sinagoga, torna-se necessário agora um corpo religioso que corresponda à idade perfeita das revelações, à vida plena da grande obra. É esse corpo que vamos ver brotar sob a ação humilde, harmoniosa e pejada de imenso porvir que devemos agora contemplar.


II


Quando se diz que Jesus Cristo fundou a Igreja, há quem peça para ver, no tempo dele, um grupo religioso semelhante ao nosso, diferindo apenas pela amplitude. Teremos de dizer até que ponto, filosoficamente, essa concepção é falsa. A Igreja, nos seus primórdios, tem apenas delineamentos; porém faz-no-los vez no próprio dia em que a ideia nova vital é lançada na sua matéria consciente.

Jesus faz-se reconhecer; fala, e a sua influência, que é uma lei de vida, apossa-se da matéria ambiente na medida em que essa matéria está preparada para recebê-lo. “Vem!” diz ele, e a pessoa vem (Mt VIII, 9; Mc X, 21; Jo I, 46). Ou mesmo, como no caso de Madalena, de Nicodemos, nada havendo ele pedido, acorre-se, reconhecendo nele o ideal que se procurava. Assim as substâncias que o turbilhão vital arrasta colocam-se sob a lei da alma.

A alma espiritual introduzida no mundo por Jesus vai assim, por atração, por conaturalidade, constituir para si um corpo. Ninguém vem a mim, dizia o Salvador, se meu pai não o atrair. Que é essa atração do Pai, se não é Deus vivo nas almas sob a forma de um apetite sobrenatural que ele provoca, e que em seguida saberá satisfazer, quando essas almas tiverem reconhecido em Cristo o meio de realizarem o que procuravam?

Essa atração interior constitui rapidamente a Jesus um grupo de aderentes, homens e mulheres, em número bastante grande, entre os quais emergem e se distinguem, nomeadamente escolhidos, setenta ou setenta e dois discípulos. Digo nomeadamente, embora nenhum catálogo autêntico nos tenha chegado; mas a cifra setenta (ou setenta e dois segundo os manuscritos) é dada por Lucas (X, 1), e alguns nomes sobreviveram, como Barnabé ou Sóstenes.

Um terceiro grupo mais restrito e especialmente eleito será o dos Doze, entre os quais Pedro, Tiago e João parecem formar ainda uma seleção. Enfim, Pedro revela-se como o chefe, o centro de unidade para o futuro, quando o centro eterno, Cristo, se tornar invisível.

Ora, Jesus toma bem cuidado de dizer aos que terão um papel no Estado espiritual por ele construído, que Ele os escolhe, e não apenas os recebe por uma espécie de acessão passiva (João XV, 16). Assinala assim a sua intenção, que é de lhes conferir um poder social. Intenção que aliás se revela em múltiplas palavras assaz conhecidas, palavras que não deixam dúvidas senão aos que dúvidas procuram.

E que a sociedade que ele assim funda não seja uma sociedade particular, porém a cidade universal das almas, é o que já assinala simbolicamente essa cifra doze, que corresponde às doze tribos, isto é, à humanidade religiosa provisória, ao novo Israel, à Igreja incoativa de que falamos, e também a cifra setenta, ou setenta e dois, que correspondia, segundo a tradição judaica, ao número das nações da terra, a que o Evangelho concerne. O próprio Jesus faz ressaltar esse simbolismo, prometendo aos Doze uma glória que ele figura por doze tronos, julgando as doze tribos de Israel (Mt XIX, 28). Julgar as doze tribos de Israel no fim dos tempos, é julgar o mundo, havendo-se este, graças à Igreja universal saída da sinagoga, tornado o prolongamento religioso de Israel.

Mil vezes tem-se feito notar que esses fundamentos da obra cristã, os apóstolos, não são uns letrados, uns filósofos, ou pessoas importantes nos seus grupos; são pessoas de pouca importância. Não que haja nisso o menor exclusivismo democrático; o Evangelho não é propriedade dos pequenos mais do que dos grandes; não se deixará que ele seja açambarcado por ninguém; mas, se – pelo espírito ou pela situação – devem os grandes ser mais tarde incorporados ao organismo constituído, é útil que eles próprios não sejam constituintes, para não parecerem usurpar o papel assimilador que pertence à ideia vital.

O estabelecimento da Igreja toma assim o seu ponto de partida. Simples lineamentos, mas com um espírito ativo e com centros de ação organizadora, que já se coordenam numa espécie de encéfalo, na pessoa de Pedro. É o embrião no inicio do desenvolvimento. Jesus experimenta-lhe, por assim dizer, a vitalidade e convida-o a tomar por si mesmo a consciência dela, confiando aos Doze, até aqui instruídos pouco a pouco, missões que servirão de prelúdio à conquista do mundo. Que isso esteja prenhe de todas as realizações e de todas as organizações ulteriores, fá-lo Jesus ver, e assinala simultaneamente a unidade, a significação transcendente e o futuro da sua obra numa circunstância que figura entre as mais solenes da história cristã.

Era em Cesareia de Filipe. Julgando chegada a hora de se declarar completamente, Jesus pergunta de repente aos Doze, depois de fingir interrogá-los sobre o estado da opinião pública no tocante à sua pessoa: E vós, quem dizeis que eu sou? A esta pergunta inopinada, é Pedro quem se levanta e quem, com o entusiasmo pronto que está na sua índole, mas, quanto ao fundo, inspirado de mais alto, exclama: Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo.

Feliz és tu, declara-lhe o Salvador, feliz és tu, Simão Bar-Jona! – e lhe declina os seus nomes de homem para convidá-lo a compreender que o que se passou nele não é do homem. – Não foram a carne nem o sangue, quer dizer, a educação doméstica ou a intuição humana, ainda quando trabalhasse sobre os dados que lhe fornece o espetáculo de uma vida divina, não foram a carne nem o sangue que te revelaram estas coisas, porém meu Pai que está nos céus. É preciso a intervenção dos céus para a palavra de fé tal como ela vem à autoridade em vista do grupo. Porquanto foi em vista do grupo, e como que já em seu nome, que Simão falou inspirado do alto.

Logo lho declara Jesus, e sua réplica é ao mesmo tempo uma espécie de recompensa pessoal e de definição da Igreja: E eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Falar assim não é fundar a Igreja num trocadilho, como levianamente disseram alguns; é dar o seu emprego natural a um nome simbólico atribuído desde o início a Simão, conforme o costume judeu, quando Jesus lhe disse, escolhendo-o: Tu que te chamas Simão filho de Jonas, chamar-te-ás Kephas, quer dizer, Pedro, ou Rochedo (Jo II, 42).

Portanto: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. A ideia de uma construção regular e durável é aqui nitidamente afirmada. Não se trata de uma assembleia de acaso, formada de próximo em próximo, mas de uma obra fundada que subsiste. E as portas do inferno não prevalecerão contra ela. As portas do inferno, quer dizer, as potências da morte, que triunfam de tudo o que é humano, que se fecham, indiferentes e fatais, sobre tudo o que a natureza ou o homem sós põem a lume; quer dizer, ainda, as potências do mal, de que Satanás é o tipo, e cujas cidadelas se erguem em face da cidade do bem. A Igreja não sucumbirá a nenhum desses ataques; a Igreja não morrerá, e seu fundamento, a sé de Pedro, durará tanto quanto ela. Tal é a promessa. “Fato curioso, observa Henri de Tourville, o desse homem da Galiléia, que não teve em sua pessoa nada de extraordinário, e a quem um amigo, aldeão de Nazaré, usando do mundo e do futuro como senhor, por sua simples autoridade e com uma palavra colocou no pináculo da história e à frente da humanidade”4.

Na continuação do texto, a função de chefe é figurada pelas chaves, insígnia do intendente ou mordomo de palácio. Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus, isto é, o poder de admitir ou de rejeitar os fiéis. No Apocalipse, é o próprio Jesus quem traz as chaves de Davi, como Grão Mestre do Reino de Deus. Aqui trá-las-á, por procuração o seu discípulo chefe, primeiro porteiro do Reino.

Esse reino evidentemente é a Igreja, visto que Jesus acrescenta: Tudo o que ligares na terra será ligado no céu, e tudo o que desligares na terra será desligado no céu. Esse poder de ligar e de desligar, que significa permitir ou proibir, é relativo às ações ou às coisas, assim como o poder de admitir ou de rejeitar é relativo às pessoas. Assim, o magistério de fé indicado pela primeira declaração do Mestre (como aliás por muitas outras palavras), e o magistério governamental implicado na segunda, são claramente definidos.

Tinhamos razão de dizer que um tal fato é central no estabelecimento evangélico da Igreja; ele serve de base à obra, com a sua forma hierárquica claramente centralizada, é necessária à ação espiritual predita. Tudo, partindo de uma Encarnação para se adaptar à natureza carnal ao mesmo tempo que espiritual do homem, tudo deve envolver em seguida no visível, e não no espiritual puro, isto é, no invisível. O que deve ser visto é a humanidade nova agrupada em torno de Cristo, redimida, unida ao Pai com sua própria unidade, animada pelo Espírito. Isso não é possível sem uma organização social, sem uma representação, sem uma diversidade de funções exprimindo a diversidade humana na unidade, à maneira de um corpo. E, como um é que manifesta melhor um, do mesmo modo que, no ponto de partida, tudo se concentra na unidade de Cristo, concebe-se que a representação principal de Cristo seja por sua vez unitária. Donde a eleição de Pedro, ponto de partida do Papado, Jesus não mencionou expressamente sucessão; mas criou o papel; mais tarde, como agora, bem forçoso era fosse esse papel desempenhado. O próprio Jesus coloca a duração de sua Igreja na dependência do Rochedo sobre o qual a funda, e di-la perpétua. Pode-se, pois, pensar que, se desde o início ele assim não houvesse disposto, isso se teria espontaneamente estabelecido mais tarde, bem longe de ser um desvio posterior, como pretendem alguns, e um plágio da autoridade romana.

Quando ao magistério sacramental, este resulta de outras declarações não menos precisas, das quais dentro em pouco encontraremos a principal.

Mas, antes das palavras supremas e antes do supremo apelo ao futuro, a instituição da Igreja necessita, no presente, de uma consagração dolorosa.

Os pactos sociais da antiguidade selavam-se sempre por um sacrifício. Por isso dizia-se: ferir uma aliança, matar uma aliança: ferire foedus, mactare foedus. Um sacrifício mais alto deve aqui intervir, porque a aliança entre Deus e o homem, em mira a fundar essa vida em comum que é a Igreja, requer da parte do homem um esforço de ascensão e de purificação que não pode ter lugar sem dor. O Filho do Homem assume-lhe o encargo coletivo, e acha-se preso por sua obra numa espécie de engrenagem onde deve necessariamente sucumbir.

Nos confins de todos os mundos, entre o passado e o futuro, entre a terra e o céu, entre a matéria e o espírito, entre a culpabilidade e a justiça, deve ele ser esmagado e sacrificado pela aproximação temível que ele tem por missão promover.

O passado não quer perecer; o futuro tem dificuldade de nascer; toda passagem renovadora é acompanhada de conflitos; todo nascimento é uma crise.

A matéria não quer ceder; o Espírito desarranja-a nas suas combinações e nas suas esperanças; ela vai resistir, e resistirá a ponto de Pascal poder dizer: Jesus estará em agonia até o fim do mundo. A sua agonia presente será causada pela resistência imediata de um meio corrupto, símbolo bem indicado daquilo a que o Salvador chamava o mundo.

Quanto ao céu e à terra, estes não podem juntar-se e unir-se senão no crisol do amor – amor reparador, em relação a um passado carregado de responsabilidades e de misérias; amor inspirador, prestimoso e vencedor em relação ao futuro.

Ora, esse amor deve ser visível e para sempre indiscutível. Ninguém ama mais, disse o próprio Jesus, do que aquele que dá a vida por seus amigos (João XV, 13). Em Cristo martirizado, Deus e o homem dar-se-ão reciprocamente essa prova. O homem morrerá por seu Deus; um Deus morrerá por seu Deus; um Deus morrerá pelo homem. Desse duplo selo do Testamento, o rótulo da cruz será o quirógrafo. Em hebraico, a língua do passado religioso; em grego, língua da civilização temporal; em latim, língua do poder viril e conquistador do Romano, poder-se-ão ler os perdões e as munificências celestes, as retribuições generosas e os esforços de uma criatura assim prevenida pelo amor.

Grandezas de carne, grandezas de espírito e grandezas de caridade, consoante a divisão célebre de Pascal, unificar-se-ão assim na caridade superabundante e mortal. O passado, sublevado em tempestade, por mais que julgue quebrar e suprimir o que considera ser antagonista, não fará senão desprender violentamente da árvore humana o grão de futuro que é Cristo, e, sepultando-o numa terra que ele próprio contribui para tornar fecunda, graças aos cuidados de uma Providência mais forte do que as suas cóleras preparará as futuras germinações.

Foi o que repetidas vezes Jesus procurou dar a compreender aos seus. Se o grão de trigo caído em terra não morre, dizia-lhes ele, fica só; mas, se morre, dá muitos frutos (João XII, 24). Cumpre dizê-lo, a esse pensamento eles eram refratários. O próprio Pedro, a despeito das suas declarações proféticas, antes por causa mesmo dessas declarações, cujo sentido profundo lhe escapava, Pedro exclamara um dia: Longe de ti isso, Mestre! E o mestre, voltando-se, lhe dissera: Retira-te de mim, Satanás, tu me serves de escândalo (Mt XVI, 23). Ele reencontrava no discípulo o Tentador dos seus primórdios, que o excitava a subtrair-se indene e glorioso a uma obra essencialmente mortal. Então, insistindo no sentido da sua profecia, o Salvador especificara: É necessário que o Filho do Homem sofra muito, e seja morto, após o que ressuscitará ao terceiro dia (Lc IX, 22).

Efetivamente, cumprido o rito, consumado o sacrifício e fornecida a prova, Cristo não tem razão para ficar no túmulo. Convém que saia dele, provando, pelo seu domínio póstumo sobre a morte, o seu domínio anterior, e em consequência o caráter generoso da sua paixão. Dou minha vida para retomá-la, disse ele, e ninguém ma rouba; mas dou-a eu mesmo; tenho o poder de dar e o poder de a retomar (Jo X, 17).

Tendo-a, pois, retomado após o silêncio misterioso dos três dias, ele retoma ao mesmo tempo a sua obra. A sua morte era um simples episódio. Longe de ser um fim, era o verdadeiro começo, visto que, indispensáveis como são as utilidades que dela virão, não se podia verdadeiramente começar senão depois desse aparente fim de tudo.

Eis que de novo Jesus aparece e fala. Quarenta dias de sobrevivência correspondem aos quarenta dias do deserto, enquanto ele preparava a sua missão. Então ele jejuava, privando-se de um alimento necessário. Agora, come sem mais ter fome, liberto das misérias mortais, porém querendo condescender e provar.

Os quarenta dias do deserto foram a transição entre a vida oculta e a vida ativa; os quarenta dias de sobrevivência serão a transição entre a vida individual e a vida de Cristo em seu “corpo” social. O Cristo individual mostra-se assim desaparecendo, voltando ao espiritual completo, e, se a sua vida terrena foi o último passado, se a sua morte foi o instante solene dos nascimentos, a sua sobrevivência é o primeiro futuro. O caminho doravante está aberto a uma obra que ele concebeu como Deus, aceitou em nome de todos como homem, e iniciou como síntese viva dos dois princípios que agora se trata de fazer agir.


***


Após a dupla lição de coisas da cruz e do túmulo glorioso, os discípulos estão maduros para uma colaboração consciente e efetiva. Jesus lhes fala como a quem de ora em diante pode ouvir. O Espírito virá, que lhes confirmará tudo.  Mas desde já ele, Jesus, lhes põe nos ouvidos palavras cujo som não mais poderá extinguir-se. Diz-lhes: “Todo poder me foi dado no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-as a guardar tudo o que vos mandei. E eis que eu estou convosco todos os dias até o fim do tempo” (Mt XXVIII, 18).

A presença misteriosa de que o Salvador aqui fala entende-se de várias maneiras. É a presença eucarística; é a presença interior pela graça que o Espírito Santo traz. Mas é também a presença social por procuração. Porquanto, tomando à parte Simão Pedro, Jesus lhe reitera solenemente os seus poderes. Diz-lhe: “Apascenta minhas ovelhas, apascenta meus cordeiros” (Jo XXI, 15).

O serviço da palavra de Deus pelos apóstolos e seus sucessores; a administração do batismo, o sacramento da entrada, que coloca o cristão na trilha de todos os outros sacramentos; o exercício da autoridade por um grupo que tem por chefe claramente designado Pedro e sua sequência sucessora (já que isso deve durar até o fim do tempo); tudo isso acha-se, pois, determinado. E tudo isso é a Igreja.

Alguns têm dito que essas palavras tão claras não pertencem à história, por nos virem de Cristo ressuscitado, o que, sem dúvida, no pensamento deles, quer dizer: de um Cristo de sonho. Mas Cristo ressuscitado é para nós coisa mui diversa de um sonho. Já não é mais, se se quiser, um ente histórico no sentido pleno do termo, já que a sua vida, doravante transcendente, escapa às leis do que se agita no tempo; mas é um ser historicamente agente, visto que se manifesta por fenômenos reais, insertos na trama da história, e que nela produzem efeitos. Aliás, as mesmas coisas ouvimos da boca de Cristo vivo temporalmente, e nenhuma razão permite pô-las em dúvida.

A Igreja nasceu, pois, realmente. Nascida era ela desde sempre no seu Cristo-Deus. Nascida era em Belém no seu chefe homem e Deus. Nasceu de ora em diante em si mesma como sociedade organizada de uma organização inicial, mas positiva. Estreia humildemente; é bem o pequenino rebanho de que falou o divino Mestre (Lc XII, 32). Mas a esse rebanhozinho ele prometeu um reino. O reino dilatar-se-á pouco a pouco na terra, segundo a lei de desenvolvimento progressivo que foi a do mundo antigo, mas com um elemento novo, perfeito em si, posto que indefinidamente perfectível em nós.

E o reino assim regido, ao mesmo tempo que preparará o futuro da raça, salvará, alma por alma, aqueles que quiserem submeter-se às suas leis. Procriará eleitos para encher o céu. O Reino dos céus terrestre: tal será o nome da Igreja “militante”. O Reino dos céus puro e simples: tal será o nome da Igreja “triunfante”. Um dia, eles se juntarão, quando Aquele que vai partir voltar, desta vez liame definitivo entre as duas séries de fatos que dividem a vida do homem: fatos temporais, fatos eternos; fatos materiais, fatos espirituais; fatos do passado e do presente, fatos do futuro.

É a segurança que, para acabar, mensageiros celestes dão aos Doze, depois que a nuvem de luz lhes furtou aos olhos o Senhor que sobre ao céu, sobre o horizonte de Jerusalém e do mundo.

Mas, antes, a série dos tempos religiosos deve desenrolar-se ainda sobre este solo. Os apóstolos e a Igreja têm de cumprir a sua missão do tempo: recrutar adeptos ao plano divino, regê-los, e, para isso, organizar-se, progredir, defender-se, estabelecer a obra no coração do tempo, e prossegui-la. É o que os veremos empregar-se com uma atividade e um êxito que evidentemente parecerão exceder o homem, tão eficaz será o Espírito deixado como sucedâneo divino por Aquele que acabava de pôr termo à sua presença visível.

O Espírito! O Espírito do Cenáculo com suas línguas de fogo, com o seu vento violento, com os seus dons e os seus presságios, dele se pode dizer que pela sua vinda, o seu coroamento à obra de fundação da Igreja. Realiza-lhe a Confirmação.

A ascensão e a sediação à destra do Padre rematam e levam ao perfeito a divina Pessoa dada à Igreja com “cabeça”; libertam-na da sua mortalidade e das suas outras fraquezas voluntárias: assim o corpo místico vem ao perfeito pelo dom integral do Espírito e pelas graças sociais do Cenáculo.

Como essas graças são o efeito dos méritos de Cristo, só são outorgadas na sua plenitude após o acabamento da obra meritória e da sua consagração celeste. Era por isto que Jesus dizia: “Se eu não for, o Paráclito não virá a vós; mas, se eu for, vo-lo enviarei” (Jo XVI, 7).

Ele vem. E não se pode negar que não haja nisso um milagre psicológico de primeira ordem. É o Espírito que torna de repente viris e clarividentes aqueles homens tão pueris, dantes tão inconscientes a respeito das realidades de que durante três anos foram circundados e que lhes fizeram o efeito de um mistério turvo; a respeito d’Aquele com quem viveram e a quem até o fim, de certo modo, não conheciam (Jo XIV, 9); a respeito da obra e da sua significação verdadeira, da vida e da morte de Cristo que por tantos lados foram para eles um escândalo, da sua própria ressurreição, que os deixou deslumbrados, esmagados de espanto, mas do que lucidamente convencidos; a respeito, enfim, do seu próprio papel, ainda tão mal julgado, tão mal aceito, e da parte deles objeto de tanto temor.

Eles têm agora a intuição de tudo. A breve irradiação de Cesareia de Filipe, não seguida de efeitos a ela proporcionados, seguida de uma negação, tornou-se em Pedro, e solidariamente nos outros, uma claridade sem trevas. Tantos ensinamentos, estímulos e preceitos docilmente recebidos, porém mal assimilados e mal harmonizados, unem-se num feixe. Empolga-os uma certeza que, deles, os pusilânimes de ontem, vai fazer uns heróis e uns conquistadores. É uma transformação radical. A alma deles iluminada poderia dizer como Paulina em Polieucto:

Vejo, sei, creio estou livre de ilusões.
E essa fé ardente, prática e comunicativa é a que vai transmitir-se; é a que já se manifesta na multidão ambiente, onde um vasto lance de rede testemunha a sua força; é a fé da Igreja recém-nascida; é a nossa. E é o Milagre da Igreja na sua consumação inicial.

Este termo inicia torna sempre, porque a Igreja está sempre no seu começo, como tudo o que é do Espírito. Mas enfim, tudo aqui é consumado em preparação se tudo começa como realização. Pela descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos, a Boa Nova evangélica pode, como o fará S. Paulo, definir-se plenamente “a virtude de Deus para a salvação dos que creem” (Rm I, 16). Os homens de todos os tempos terão parte nela em razão dos Doze assim investidos. A própria vida futura ficar-lhes-á a dever. Esses homens vêm a seu tempo, de um futuro eterno. Sem dúvida eles mesmos têm pensamentos mais humildes; obedecem; mas com toda certeza grande lhes é a esperança. Eles esperam, como Abraão, pela cidade de fundamentos sólidos de que Deus é o arquiteto e o construtor (Hb XI, 11), e, se, nesta nova fase do trabalho, eles não verificam mais do que o patriarca o efeito definitivo das promessas, sabemos que eles o viram e saudaram de longe (Ibid, 13)

3 – A este respeito, como a tantos outros, ler-se-á com incomparável fruto a obra tão preciosa do P. Lagrange: L’Évangile de Jesus-Christ, Paris, Gabalda editor.4 – Henri de Tourville, Lumiêre ET Vie, p. 218, Bloud editor.


- Retirado do livro "O Milagre da Igreja" de A. D. Sertillanges
 
 
 

A Igreja antes da Igreja - A. D. Sertillanges



Demos ao nosso primeiro estudo um título que não poderia convir a muitas instituições. Ele significa que a instituição religiosa de que falamos se precede de alguma sorte a si mesma; que, portanto, por alguma coisa de si mesma ela é superior ao tempo; que em todo caso lhe é igual; mas dá no mesmo; pois só é igual ao tempo, ao invés de se deixar talhar nele uma parte arbitrária, aquilo que se mostra superior ao que o tempo mede.

A história de toda instituição é como uma página branca tarjada de preto; precede-a o nascimento de si e outro nada segue-a; porque tudo morre. Só a Igreja não somente não morre, mas, em certo sentido, não nasceu; porquanto, se ela é uma realidade temporal, tendo uma história, é também uma realidade extratemporal, em razão de não passar a sua história de uma espécie de símbolo. Símbolo real, símbolo que é uma parte da sua realidade, mas que se acha transcendido por uma realidade mais alta, pertencente ao mundo do espírito e roçando pelo tempo apenas com a ponta das asas. Aliás, essas asas são tão largas de envergadura que envolvem todo o tempo, à feição do Espírito criador, de quem a Igreja é uma emanação direta.

Tal é a primeira noção a penetrar quando se quer falar corretamente dos antecedentes da Igreja.

É que, para o católico, a Igreja não é uma instituição particular, como haveria outras ao lado, antes ou depois: é uma instituição universal, que chama a si e que a si subordina realmente toda a raça, no intuito de, por Cristo, homem universal, uni-la a Deus que habita Cristo e que se fez homem n’Ele, a fim de que por Ele o homem suba e tenha acesso a Deus. Nestas poucas palavras, todo o pensamento católico se encerra. Ora, a raça de que Cristo é o chefe religioso e da qual, por Ele, o Espírito de Deus se torna a alma, a raça, digo, é todo o passado e todo o futuro, ao mesmo tempo que o presente.

A humanidade compõe-se de mortos tanto e mais do que de vivos, escreveu Augusto Comte: pela mesma razão compõe-se de homens nascituros tanto e mais – penso eu – do que de homens já nascidos ou desaparecidos. A humanidade é todo o desdobramento das gerações sobre a terra, como um eu individual é o desdobramento de uma vida em seus diversos estados. Era o que Pascal via ao escrever a sua fórmula célebre: “A humanidade é como um homem único, que subsiste sempre e aprende continuamente”.

Portanto, se a Igreja é a humanidade religiosamente organizada por meio desse Filho de Deus – Filho do Homem, que é Cristo, deve a Igreja ser necessariamente onitemporal. Poder-se-ia dizer que é eterna, considerando apenas o seu caráter divino: foi o que permitiu a João, o inspirado, dizer de Cristo, chefe da Igreja, que ele é antes que o mundo fosse nascido, ou seja, como Deus. Mas como homem, precisamente enquanto chefe da Igreja, S. Paulo di-lo-á não mais eterno, porém onitemporal, pertencente a todos os tempos: Ontem, hoje e em todos os séculos (Hebreus 13, 8).

Não que queiramos ressuscitar aquelas lendas rabínicas segundo as quais Cristo viveria de uma vida positiva, posto que invisível, através das gerações, por exemplo, como diziam alguns, no paraíso terreal, conservado e guardado pela espada de fogo do arcanjo contra a curiosidade dos geógrafos! Mas não são essas realidades materiais as únicas realidades.

Se sempre foi verdade dizer que nenhum homem chega a Deus senão por Cristo, que em Cristo a humanidade toda é oferecida a Deus, aceita por Deus e unida a Deus para uma vida eterna, bem necessário se torna que, de uma maneira ou de outra, Cristo tenha existido sempre, sempre à disposição de quem quer que, homem de ontem ou de hoje, daqui ou dacolá, procurasse o caminho para o Único Necessário e o Único Suficiente da alma humana.

Há uma gravitação universal das almas, e Cristo lhes é o Sol. Somente n’Ele está a grandeza, a inocência e a felicidade da terra. Religião viva, se assim posso falar, já que Ele se apresenta como o Vínculo, a Ponte, a Entrada, a Porta que faz comunicar e estabelece numa vida comum o homem e Deus, deve Ele dominar a raça na sua dupla extensão, espacial e temporal. De tão longe quanto venhamos sobre o imenso meridiano do universo moral, e qualquer que seja o momento do tempo em que situemos a nossa frágil existência, cumpre que, de uma maneira ou de outra, toquemos nesse ponto, para tocarmos no divino que lhe é parcialmente idêntico. Só aí a tangente infinita toca o círculo humano.

Toda a questão, para nós, está em definir sob que formas históricas essa vida espiritual, que Cristo preside e que é a vida da Igreja, pôde manifestar-se antes que a própria Igreja fosse deste mundo na sua forma presente.

Mas primeiro devemo-nos perguntar por que é que somos trazidos a esta complicação: a Igreja antes da Igreja, Cristo antes de Cristo, e a todas as consequências que daí decorrem.

Há aí uma questão de filosofia religiosa que muitos não percebem, mas que nem por isso deixa de existir, e cujo desconhecimento dá lugar a objeções variadas contra a teologia católica. Se Cristo é o ponto de partida e o meio único de todo o movimento religioso humano, por que é que, historicamente, ele não se acha no início da história humana? Aquilo que é definido como princípio deveria, ao que parece, fazer-se ver no principio. Natural seria que o Novo Adão, como nós chamamos a Jesus Cristo, o segundo primeiro homem, como diz o Padre Lagrange, fosse colocado no começo da vida universal, com toda a sua linhagem diante dele, como nosso chefe de raça temporal tem a sua linhagem diante de si.

Em lugar disso, somos levados a estabelecer o nosso sistema religioso sobre um duplo plano: um plano quase metafísico, segundo o qual Deus é situado em primeiro, depois Cristo, e finalmente todos os homens, seja qual for a sua época; e, doutra parte, um plano histórico, em virtude do qual Deus está, de fato, na dianteira, mas desta vez considerando como na ordem do tempo; em seguida, toda uma longa série de séculos ou mesmo de milênios, em que os homens viveram sem o Cristo histórico; depois Cristo; depois uma segunda série de gerações saídas dele.

Esses dois planos coexistem e não coincidem. Podemo-nos perguntar por quê. Mas a razão não é difícil de dar, e é pouco filosófico o motivo alegado em sentido contrário.

Um pai é obrigado a vir ao mundo antes do filho; mas um príncipe já não é obrigado a nascer antes dos súditos: podem estes preparar-lhe o reinado. Com maioria de razão um chefe espiritual, cuja ação utiliza a Divindade, senhora dos tempos, não tem ele necessidade de situar sua vida num momento antes que noutro? O homem poderá unir-se a Cristo futuro tanto quanto a Cristo passado, a Cristo desconhecido tanto como a Cristo conhecido. Antes de Lavoisier os homens viviam do oxigênio do ar e não o conheciam.

Chefe de raça espiritual, Cristo pode, pois, inserir sua vida temporal onde quer que seja, como o ponto de partida do círculo é não importa onde, e como o fazedor de carros que empurra uma roda imprime a ação, sobre o contorno desta, em qualquer das pinas, mas nem por isso deixa de acionar a roda toda. A roda dos séculos tem assim pinas sucessivas que são as diversas épocas; a ação de Cristo, exercendo-se sobre uma delas, animará todas as outras.

Verdade é que será com modalidades diferentes, e eu não pretendo que a presença real de Cristo, na sua vida histórica, seja desprovida de interesse religioso. Mas fica assente que a ação de Cristo, exercendo-se num certo ponto do tempo, poderá irradiar-se sobre todos os outros, e sobre cada um conforme a sua natureza própria. O passado não se comportará em relação a ele como o futuro, nem tal passado ou tal futuro como tal outro passado ou tal outro futuro; portanto a roda do tempo não é em toda parte idêntica a si mesma, como uma roda de veículo – nisto nossa comparação claudica; mas tudo estará, entretanto, sob a dependência dele.

Abstraindo por enquanto as diferenças particulares, dizemos: aparecendo Cristo no meio dos séculos – na plenitude dos tempos, como diz S. Paulo -, o passado liga-se a ele sob os auspícios da esperança, da espera, das preparações; o presente é a posse, e o futuro, volvendo-se para ele, tomará uma atitude inversa, ligando-se a ele pela lembrança, pelos desenvolvimentos da sua obra, pelo progresso. Cristo é assim todo de todos, posto que sob modos diversos.

Resta saber por que essa organização. Mas este porquê é de uma simplicidade que só uma ignorância absoluta do que é a vida religiosa pode desconhecer.

Há quem imagine que a religião é toda divina, vinda do alto para nós que a recebemos, sem condição de reciprocidade, pelo menos inicial. Se ela é assim um puro benefício, não se vê bem por que não é logo concedida por um Deus bom, por um Deus que não faz acepção nem de pessoas nem de épocas. Mas isto é raciocinar como crianças.

A religião não é um dom unilateral; é uma permuta; é uma relação do homem com Deus. E, seguramente, nessa relação é Deus quem começa; mas, já que o homem deve seguir, cumpre que a iniciativa de Deus se submeta às condições naturais da vida humana, que implicam desenvolvimento e, por conseguinte, antecedentes, concomitantes e consequentes; preparação, posse e utilização; começo, meio e fim. Esta trindade é inevitável, resultado da natureza profunda de tudo o que nasce no tempo, visto ser da natureza do tempo comportar o passado, o presente e o futuro.

São Tomás repetidas vezes explicou quais as razões de psicologia individual e social que se opunham aqui à confusão das datas, se assim posso dizer, de um Cristo a preceder os antecedentes de Cristo, de uma lei evangélica não preparada por uma lei judaica, e de uma lei judaica coincidente com uma lei natural do inicio dos tempos. Não entramos neste detalhe; porém sustentamos que a nossa Igreja eterna, que se compõe de três elementos: Deus, o homem, encarado na sua unidade onitemporal, e o Homem-Deus como vínculo, deve escalonar as suas manifestações conforme as divisões essenciais da duração humana. Haverá primeiro as preparações, as antecipações da Igreja. Haverá o fato central, constituído pela vinda de Cristo que, trazendo a Deus em si e representando o homem chegado ao posto desejado para inaugurar uma obra religiosa perfeita, iniciará o trabalho propriamente dito da Igreja. Haverá, enfim, o desenvolvimento, o progresso de uma obra destinada a transformar o mundo. Será aqui a história da Igreja no sentido próprio, embora historiadores tais como Rohrbacher, vindo ao encontro do pensamento que eu exprimo, façam remontar seus relatos até a Adão e mesmo – conforme em breve explicarei – até ao dealbar do mundo.

Eis aqui, pois, justificado e explicado já por uma parte o nosso título: A Igreja antes da Igreja. Cumpre, porém, precisar.

Partindo do fato de representar a vinda de Cristo, para o cristianismo, um episódio central e não um inicio, há razão de nos perguntarmos que condições se impõem a cada um dos dramas desta trilogia: as preparações da Igreja, o nascimento da Igreja, o desenvolvimento da Igreja.

Os dois últimos atos não nos interessam neste momento; resta, porém, o primeiro, e, para encará-lo nitidamente, proponho um exemplo tanto mais próprio para esclarecer o nosso caso quanto, de certa maneira, faz parte dele.

Todos nós, cristãos ou simplesmente filósofos espiritualistas, dizemos que a criatura pensante é neste mundo a razão de ser de todo o trabalho da natureza. Tudo é para os eleitos, diz S. Paulo. A humanidade é um fim em si, dirá Kant, ou, noutros termos, a coisa subordina-se à pessoa. Sabe-se que Bergson, na sua recente obra As duas Fontes da Moral e da Religião, retomou à sua conta esta tese.

Justamente por causa dessa finalidade, e em razão da nossa observação de há pouco, o homem não aparece no inicio, mas deve ser preparado. Como? Primeira mente sob uma forma remota, pelo estabelecimento do seu meio, pela elaboração das substâncias que devem assimilar-se à sua vida, pela organização das forças que ele terá de utilizar e de que a sua vida será, por um lado, a resultante, e, por outro, a conquista. Como serão precisos séculos para este trabalho! Começamos a suspeitá-lo; mas só poderíamos admirar-nos disto desconhecendo a desproporção quase infinita do espírito para a matéria.

Em seguida, a título intermediário entre o trabalho cósmico e a humanidade constituída, são necessários os lentos progressos das espécies inferiores, a cera viva de onde jorrará um dia a flama do espírito. E esse jorramento não se dará sem uma intervenção especial do Criador; será como que um lampejo novo da Fonte luminosa imanente a este mundo enquanto ele contém Deus; mas essa obra última nem por isso estará menos implicada numa série de que ela será o último termo, mormente se, a coisa permitida pela fé tanto como pela ciência, admitirmos que o corpo do homem foi preparado pela vida antropoide.

Apliquemos o nosso exemplo, e, ao invés da humanidade em relação ao globo e a tudo o que ele encerra, encaremos a Igreja em relação à humanidade. É o mesmo caso prolongado, e a lei de desenvolvimento será a mesma.

Diremos primeiro, e desta vez em sentido nitidamente religioso, e não somente espiritualista: Tudo é para os eleito, isto é: Cristo, e o grupo de Cristo, a Igreja, é a finalidade de toda a história. Nada se agita no mundo senão para promover o reinado dos fins espirituais da humanidade, que é o trabalho próprio da Igreja. O Discurso sobre a História universal, a despeito de certas fraquezas inevitáveis a quem se propõe seguir assim os vestígios da Providência, é, no fundo, não somente magnífico como a eloquência de Bousset, mas inatacável. Ele não faz senão desenvolver esta antiga afirmação do Pastor de Hermas (século II): “A Igreja foi fundada antes de todas as coisas, e para ela é que o mundo foi feito”.

Ora, se é verdade que os fins últimos devem governar desde o começo, deve-se dizer, como já o fizemos, que o trabalho relativo à Igreja, e mesmo o trabalho da Igreja, remonta às origens do nosso mundo, e do mundo em geral, por que tudo se liga em Deus e porque a preparação do meio natural do homem faz parte da produção do homem.

Por esta razão é que o nosso livro religioso, a Bíblia, se abre por um relato da criação: No princípio, criou Deus o céu e a terra¸ como também a genealogia de Cristo remonta até Adão e até Deus: Qui fuit Dei. Sem isso, o plano religioso do mundo não seria completo ao sentido do passado, do mesmo modo que, se não tivéssemos os apocalipses e os relatos da parusia, o plano religioso do mundo não seria completo em face do futuro.

Num sentido como no outro, é preciso ir até o limite do criado e até o limiar de Deus, se assim posso dizer, de tal sorte que Deus, tocado como Providência ao longo de toda a curva do tempo, seja tocado também, como iniciador e como fim, nas extremidades dessa curva, à partida e à chegada do impulso universa.

Não quer isto dizer que os nossos livros sagrados ou os nossos pensamentos religiosos devam preocupar-se com escrever a história total ou com profetizar o futuro total. A sequência dos tempos religiosos não precisa ser completa. Não precisa mesmo ser exata do ponto de vista científico. O seu sentido religioso é que precisa ser exato, e isso requer apenas uma historicidade relativa, feita de símbolos reais, isto é, de notações simplificadas, esquemáticas; sacrificando o detalhe à visão de conjunto, pulando períodos inteiros como a série dos patriarcas na Bíblia, correndo ao fim, que é manifestar o sentido da vida.

Em razão do que, ver-se-á a cosmogonia bíblica situar-se numa região mais ou menos alheia à ciência, a história bíblica só parcialmente satisfazer a ciência, e a profecia bíblica proceder como por saltos, sem grande preocupação das perspectivas. O que, aqui entre parênteses, explica como, sem nenhum erro propriamente religioso, podem os primeiros cristãos crer no fim iminente do mundo. Eles têm na mente o que nós descrevemos: ontem Adão, hoje Cristo, amanhã reintegração do mundo e Deus; simplificam, e a intensidade com que vivem essa simplificação faz-lhes parecer mui próximos os elementos dela.

A respeito do passado, são eles ainda defendidos pela história, que não se deixa estreitar indefinidamente. Eles a estreitam muito! Mas, a respeito do futuro, não sendo retidos por coisa alguma, e colocando-se-lhes, por assim dizer, aos olhos a sua visão ardente, eles esperam a realização do plano num espaço proporcionado a uma vida de homem. É um erro; mas não é um erro religioso. Eles enredam o fio dos acontecimentos com a ordem histórica das datas de cumprimento: confusão religiosamente sem importância. S. Pedro dirá a palavra da situação observando que, a respeito de um plano religioso universal, em que os acontecimentos têm lugares teóricos mais do que propriamente temporais, mil anos são como um dia e um dia como mil anos. Esta reflexão de uma filosofia profunda.


Tal é, pois, a primeira face da nossa comparação. A história da Igreja começa, no mínimo, nas origens da humanidade, como a história da humanidade começa, no mínimo, nas origens do nosso mundo.

Digo agora que as fases das preparações serão as mesmas. Haverá preparações indiretas, conscientes em trabalhar o gênero humano, como as forças cósmicas trabalharam o globo, de tal sorte que, quando a verdadeira religião nele nascer, ache meios de fazer sua vida, assimilando todo o humano que pode favorecer-lhe a obra. Haverá em seguida – ou paralelamente, visto se tratar aqui menos de dividir durações do que de alinhar coisas – haverá, digo, preparações remotas ainda, porém mais diretas, nisto que serão religiosas, do mesmo modo que, sendo a ordem vital, o desenvolvimento da flora e da fauna terrestres preparava remotamente, mas de certo modo diretamente, o homem. E, assim, diremos que as religiões antigas anteriores ou exteriores à obra de Abraão preparavam o Evangelho.

Enfim, do mesmo modo que, quer lógica quer realmente, conforme as hipóteses, o antropoide preparava a vida do homem à terra, desta vez a título imediato, assim também o judaísmo de Abraão a Jesus, preparou Jesus e sua Igreja.

Vê-se o que há diante de nós em matéria de história. Naturalmente feriremos este assunto apenas rapidamente.


II


Não insistirei sobre as preparações remotas da Igreja que consistiam em plasmar o meio humano por um trabalho de civilização geral, introduzindo elementos de ciência, experiência, de moralidade, de direito, de arte, de poesia, etc., onde quer que a religião, que utiliza todas essas coisas, pudesse um dia encontrá-las. Não devemos insistir nisso, já que, em si mesmas, essas preparações são estranhas à ordem religiosa. São-lhe, no entanto, preciosas infinitamente como todos os nossos grandes homens têm sabido reconhecê-lo.

Os apologistas antigos, tais como Justino, Teófilo, Origenes, Basílio, Gregório de Nazianzo, Crisóstomo, Agostinho, viam nos antigos sábios os análogos seculares dos profetas, isto é, prefaciadores do Evangelho, como se disse em particular de Platão. Em Sócrates ou em Heráclito, essas vítimas da verdade, ousavam eles ver os análogos de Cristo crucificado, quer dizer, mártires antecipados da ideia cristã preparada de longe pelas suas concepções geniais. Tudo o que de bom houve no paganismo era, para esses Padres, obra do Verbo, que se difundia por toda parte antes de se concentrar em Jesus.

Isso era confessar que as civilizações antigas e todo o trabalho humano na terra foram para o judeu-cristianismo uma espécie de plasma germinativo, de meio nutriente que, primeiramente, o preparava; que, em seguida, o serviria, como a química do globo, que, depois de preparar o homem, continua a servir à subsistência e às invenções deste; com a vida animal, que o preparou mais de perto, mais de perto também o serve para sua alimentação, vestuário, transporte, regalo e tantos outros usos.

É o que se deve ver na palavra de S. Paulo: Omnia vestra sunt. Todas as coisas vos pertencem como preparadas providencialmente para vos servirem, a vós filhos de Cristo e irmãos na sua lei, não tendo todo o movimento do mundo outra finalidade senão a realização dos fins superiores que são os fins da Igreja.

Isso é simplíssimo: inútil é repisá-lo, e teremos aliás de voltar a esse ponto dizendo de que maneira se fez a utilização do passado pelo cristianismo¹. Porém o que mais delicado é de justificar é o que dissemos em segundo lugar, a saber: que as religiões antigas preparavam, a seu modo, a Igreja e o trabalho da Igreja.

Muitas vezes, tem-se uma ideia inteiramente oposta. Isto se concebe: porquanto já não se trata aqui de uma matéria a utilizar, porém de uma utilização já adquirida, defeituosa, e que, como parece, para um operário ulterior não pode ser senão um estorvo. Fazer uma boa estátua com um bloco, é normal; mas fazer uma boa estátua com uma má estátua já desbastada, para isto é preciso ser um Miguel Ângelo. O autor do David de Florença faz desses prodígios; mas estes não se repetem muitas vezes, mesmo na sua própria história.

Por isso é que os primeiros cristãos foram tão duros para as religiões estranhas; bem longe de as chamarem providenciais, chamavam-nas demoníacas, e, do seu ponto de vista, tinham razão. Mas, tratando-se um juízo de conjunto, não nos devemos deixar cegar por um ponto de vista, por mais justo e mais importante que seja na sua categoria. Demoníaco e providencia, isto não se opõe tanto como se poderia pensar. O demônio também é providencial; só age segundo a extensão da sua cadeia, e isso mesmo que ele faz pode entrar e entra na grande corrente que Deus dirige.

No cristianismo, sempre temos dito que uma religião qualquer é preferível à ausência de religião. É que, portanto, uma religião qualquer tem valor em relação à nossa, e pode servir-lhe de preparação. Verdade é que é com a condição de morrer, como uma espécie que se transmuda noutra, como um vivente que nutre um vivente superior.

Quando o passado fica aberto no sentido do futuro, prepara-o; quando pretende fechar-se e resistir à absorção, neutraliza-se, e é nisto que se torna demoníaco; porquanto, resistindo ao bem, trabalha para o mal. Com a maioria de razão o será se, à sua imperfeição que deveria fazer-lhe ceder o lugar, se misturam elementos perversos que exigem uma reforma.

É o caso das religiões antigas. O que elas têm de demoníaco é a corrupção de certas crenças e de certos ritos impostos aos seus adeptos; é, depois, a sua pretensão de reger definitivamente por sua própria autoridade a alma humana. Mas nem por isso é menos certo que elas permanecem úteis, e que, aos olhos da Providência, são etapas. Por mais que recusem deixar-se sobrepujar, o que elas recusam Deus saberá fazê-lo, e, completada a obra de Deus, poderemos, como S. Paulo, volver-nos para esse passado de imperfeições e de taras, para reconhecer nele, a despeito de tudo, o si forte allreetent eum: a procura a que Deus devia corresponder, por conseguinte uma real preparação.


Digamo-lo, pois, sem hesitar: as próprias religiões falsas foram, no passado, abrigos provisórios para os diversos rebanhos de Cristo disseminados pela superfície do globo. Havia rebanhos de Cristo; havia ovelhas isoladas espalhadas por toda a estrada dos séculos, a saber: os que pertenciam à Igreja interior de que falamos, a isso a que se costuma chamar agora a alma da Igreja. Onde estavam esses pastos, qual era o alimento deles, senão, interiormente, a graça, que a ninguém é recusada, mas também, exteriormente, tudo o que à graça podia servir de preparação e de meio?

Está bem entendido que os ritos pagãos não conferiam a graça por si mesmos; a ela não conduziam por instituição; afastavam dela quando tendiam a perverter os costumes; mas podiam também ocasioná-la, e isso por uma vontade providencial? Como? Primeiramente pelas disposições interiores que eles favoreciam, de fora, como o símbolo favorece a realidade, a palavra o pensamento, o sacrifício o amor. Em segundo lugar, pela solidariedade de sentimentos dos sacerdotes e dos fiéis unidos. Toda associação é criadora, em relação àquilo que vos congrega. As águas lustrais, os sacrifícios expiatórios, os ritos sublimes da agnação, os panateneus gregos, as cerimônias matrimoniais ou funerárias, tudo isso era ou em todo caso podia vir a ser um precioso agente de reforma moral, de misticismo interior, e assim um meio de salvação.

Não é evidente que tais grupos religiosos da antiguidade pagã representavam, como ainda representam, a despeito da sua desastrosa insuficiência, aspectos mui preciosos da verdade religiosa? Negando tão energicamente a vida ilusória que é a natureza sem Deus, e voltando-se para o absoluto, não oferecia o budismo uma das metades imensas da verdade? A infelicidade é que uma só metade de nada serve, para a utilização imediata, se estiver ausente a sua metade complementar. Voltado para o absoluto, o budismo não soube defini-lo senão pelo nada, e tornou-se assim uma religião de nada, um esforço puramente negativo, por consequência perversor, pelo fato de ser visto como um todo. Uma metade de roda que faz a roda, joga o veículo no chão.

Sempre se pode dizer que, uma vez absorvido na verdade integral, o ponto de vista do budismo se tornaria vivificante, do mesmo modo que é bebido nos nossos místicos. O formidável não que esse desprezador dirigia ao mundo serviria de relevo ao inefável sim evangélico, e, a olhar as coisas com vistas largas, no próprio plano da Providência, não seria sem importância para a história humana que isso houvesse existido.

Outro exemplo bem diferente: o helenismo. Esta alta civilização atingiu por instantes a verdade absoluta, desta vez na sua forma positiva. O Deus de Platão ou de Aristóteles não está muito longe do nosso Deus; para reduzi-lo completamente a ele, basta harmonizá-lo consigo mesmo. Qual foi o erro do helenismo? Antes de tudo foi permanecer uma pura teoria. Ele só se realizou sob as espécies da beleza, e ainda assim de uma beleza amada até o vício, escreveu Taine, prova de que o equilíbrio moral, que deveria ter correspondido ao equilíbrio relativo do pensamento, permaneceu sempre instável. O ideal foi concebido e permaneceu impotente. O Verbo de Deus irradiava, e refletia-se em pântanos, em vez de descer a eles, humilde e sublime, com o Viandante evangélico, a fim de purificá-los.

Isso não impede a filosofia grega de se mostrar, providencialmente, um dos antecedentes mais preciosos do pensamento cristão, e, quando este aparece, um dos seus maiores recursos. Nós ainda vivemos dela, e humanamente pode-se dizer que o cristianismo não seria o que é se os Gregos não houvessem existido.

Assim, alternativamente, poder-se-ia louvar com louvor parcial cada uma das formas religiosas que o mundo viu aparecer fora do cristianismo. Até nas religiões mais rudimentares, e provavelmente mesmo na mais antiga, existe o culto da família, com um valor já muito alto. Sentir a Deus no lar, ainda quando para isso se houvesse humanizado esse Deus fora de toda medida, é realmente alguma coisa. Bastará ampliar o pensamento para que o lar universal presidido por Deus Padre, tendo por irmão mais velho Cristo e por inspirador o Espírito Santo, se torne precisamente a Igreja.

A certos respeitos, esse culto doméstico, tão estreito, valia mais do que os alargamentos pretendidos dos cultos nacionais; porque estes acabavam na política, ao passo que o culto doméstico permanecia intimo, o que constitui um dos caracteres essenciais da religião. Sob este ponto de vista, os extremos se tocam; o universal e o intimo vêm a juntar-se, porque, se o Deus dos Romanos só aos Romanos interessa, o Deus universal interessa a cada homem, e lhe interessa a título íntimo, visto como a universalidade absoluta implica a imanência.

Seja lá como for, digo que em graus diversos todas as formas religiosas do passado colaboravam para o progresso da alma humana. Neste sentido, alguém pôde dizer que não há religiões falsas, que há apenas religiões imperfeita: maneira imprópria de se exprimir; porque essas religiões, inconscientes da sua obra e daquilo que a Providência demandava nelas, afundavam-se num particularismo atrofiante e corruptor. De sorte que, se seus grupos eram como que Igreja antecipadas, eram entretanto Igrejas “a latere”, abrigos de ocasião, na grande tempestade moral que agitava o mundo. Se havia nisso coisa melhor do que nada, não havia a tal coisa que, provisória ainda, mas definida e nitidamente orientada, já não terá senão que seguir adiante, para desabrochar em perfeição quando soar a hora divina.

De onde virá a grande corrente de que a nossa Igreja será o desfecho natural?

Natural! Natural não poderá sê-lo verdadeiramente; porque o fato decisivo que dará nascimento à Igreja, como o fato que cria o homem infundindo uma alma numa matéria, deverá ser um fato transcendente. Mas, num caso como noutro, o fato criador vem inserir-se numa série de fatos em continuidade natural com todas as preparações anteriores.

Para encontrar a primeira fonte de onde, à sua hora, sairá o rio cristão, cumpre remontar àquele momento decisivo, posto que muito humilde, em que o “scheik” Abraão, avisado misteriosamente e um desígnio de Deus sobre ele, de uma missão secular para a sua posteridade – que ele vê, em sonho, semelhante às areias de ouro que pontilham as praças do céu – deixa de repente a sua terra Caldeia à frente de um bando de quinhentos ou seiscentos homens, tomados entre os fiéis de Javé.

As razões dessa fuga são religiosas. A tribo semítica a que Abraão pertence não é estranha ao verdadeiro Deus, visto como ele mesmo professa e representa o culto desse Deus; mas nesse momento ela incide no culto dos Terafins, ou penates, e noutras superstições grosseiras. Nessa mistura confusa que cedo teria absorvido o melhor no pior, uma escolha providencial é feita; Abraão é o meio para isto. Ele parte. Vai abrigar a chamazinha pura na terra isolada de Canaã. A sua religião pessoal fixará o futuro religioso de Israel, e, por este, o futuro religioso do mundo. Ele será o verdadeiro pai dos crentes, e sua fuga será como que a decisio seminis, o desprendimento do germe, em relação ao meio paterno, para uma revolução ulterior.

Reconhecer-se-á aqui o último termo da assimilação de que quisemos partir para contar as etapas da preparação da nossa Igreja?

A religião de Israel, em relação à nossa fé, é o antropoide em relação ao homem. Eu dizia inda há pouco: é o embrião antes do desabrochar da alma; mas as duas comparações vêm a juntar-se, se é verdade que as fases da embriogenia reproduzem em grosso, ou em todo caso simbolizam, as fases da evolução da raça.

O que falta ao embrião israelita é a alma cristã, que nele será infundida quando o Espírito descer, socializando o dom pessoal da divindade feito a Jesus, e realizando assim na sua perfeição inicial a vida religiosa autêntica. Mas a preparação é imediata. Israel é um corpo religioso apto ao sopro do alto. O que lhe falta à vida espiritual, ele é capaz de recebê-lo, diferentemente das religiões rígidas ou desviadas, refratárias às reformas.

Não é que os desvios tenham sido estranhos àquele povo, que só parece ser o eleito a contragosto; povo de cabeça dura, ou de pescoço teso, como diziam os seus profetas. Mas esses desvios nunca foram senão os meandros da corrente que aparentemente reflui, mas que nem por isso deixa de descer o vale, arrastada por uma lei imperiosa.

Constantemente infiel, Israel constantemente se corrige, é corrigido. Javé o guarda, mesmo quando ele se esquece de guardar Javé. Ele pensa sepultar o seu Deus no politeísmo ambiente: Deus ressuscita. E esse Deus tem caracteres que não permitem confundi-lo com as falsas divindades populares nem com o Deus abstrato dos filósofos. Contra as divindades dos pagãos, ele tem a sua unidade e o seu caráter moral. Contra o Deus dos filósofos, teu o seu caráter vivo e criador.

Uno e moral Ele o é pela própria posição que ocupa, se assim posso dizer. Salvo raras exceções, a antiguidade parece ter sido dominada pelo pensamento de que os deuses são emanações mais elevadas do que o homem, porém emanações, todavia, da grande natureza universal. “Uma coisa é a raça humana, dizia Pindaro, outra é a raça divina; mas uma mesma mãe as deu à luz a ambas”.

Nestas condições, o egoísmo humano, cuja satisfação depende pretensamente dos deuses, pode sempre esperar corrompê-los ou dominá-los – corrompê-los, visto terem eles também necessidades e desejos; dominá-los, visto serem envolvidos por influências superiores, Destino ou Natureza, às quais o homem poderá dirigir-se para impor sua lei aos acontecimentos fora do esforço virtuoso.

A magia, que é universal na antiguidade, salvo em Israel – digo o Israel autêntico -, é a consequência desse estado de espírito. Com uma fórmula mágica, o homem julga-se apto a dominar a própria divindade, como com um touro de sangue rico acredita fartá-la até a embriaguez que não mais lhe pesará os dons.

O Deus de Israel, este dirá: “Acaso eu como a carne dos touros? Bebo o sangue dos bodes? Se eu tivesse fome, não to diria, pois meu é o mundo e tudo o que ele encerra... Imaginaste que me parecia contigo... mas olha: àquele que vela sobre o seu caminho, a esse eu farei ver a salvação de Deus” (Ps. XLIX).

Assim, uma só coisa agrada a Javé e uma só coisa pode vencer Javé: a obediência à lei do bem, que é a sua própria lei e o seu único amor, pois ele é o Bem vivo. Quem faz o bem vê vir a si, ainda quando fosse pelo escuro caminho entrevisto por Jó, a felicidade, flor do bem, o objeto das pesquisas que o homem só empreendeu a convite do ideal, e que o Ideal vivo quer satisfazer.

Essas perspectivas, certamente ocultas aos olhares de muitos em Israel, nem por isso deixam de ser o fundo da alma religiosa desse povo. Donde a sua superioridade moral – relativa, evidentemente, porém incontestável – em relação às raças pagãs, e tanto mais notável quanto não se pode atribuí-la à sua civilização. Lede o código de Hamurabi; que data de uns seiscentos anos antes da lei de Moisés, e achareis nele o cunho de uma sociedade muito mais policiada, muito mais sábia. Ora, com o politeísmo, aceita ela a magia e a imoralidade que as leis judaicas claramente proíbem.

E eu dizia que o Deus de Israel não está menos distanciado dos deuses abstratos do que dos deuses mendigos ou mágicos. É um louvor cujo alcance muitos não compreendem, movidos como são por um intelectualismo inimigo da vida humana. “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó”, dizia pascal, “e não Deus dos filósofos e dos sábios”.

É que, se os deuses populares estão em baixo, na terra, o Deus dos filósofos está no ar, o que não quer dizer no alto. Não está em parte alguma, a não ser na fórmula do mundo. E de que serve, para a vida, o Primeiro Motor, de Aristóteles, ou o Pai das Ideias, de Platão, ou o xioma Eterno, de Taine? O Deus dos Judeus é um vivente. É transcendente a tudo, e a tudo é imanente. Muito alto e muito próximo, a sua figura tem uma ingenuidade popular tão impressionante como a sua sublimidade.

Ele fala no meio da tempestade, porque é o Deus da natureza. Fala por Moisés ao seu povo, porque é o Deus da história. Fala à consciência de cada um, porque é o Deus do bem. E com isto não é nem um Deus naturalista, como os Baals, nem um Deus nacional, como as divindades do Império, nem o dáimon de Sócrates. É o Deus do infinito, o Deus do coração e o Deus da história universal. É simplesmente Deus, e manifesta por si só a transcendência da revelação mosaica.

Os que verdadeiramente vivem dele estão preparados para o Evangelho, adorando “o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo”, como observa profundamente São Tomás de Aquino. Por isso os livros deles, e em particular as suas coletâneas de orações, textos religiosos por excelência, ainda estão em uso edificante entre nós. Os salmos são o fundamento da nossa liturgia. Neles se acha a mais alta poesia unida à vida interior mais intensa. Os nossos meios de edificação pelo exemplo são inaugurados de maneira a mais frisante pelas admiráveis lições morais trazidas pelos livros de Jó, ou de Tobias, pela história de Betsabé e de Davi, de Suzana, dos três Hebreus na fornalha, etc.

Quanto o culto, este se eleva em Israel até à instituição prefigurativa, ao invés dos reflexos esparsos produzidos pelo espelho quebrado dos cultos pagãos. Ora, na prefiguração, o futuro prefigurado já se acha incluso de certo modo. Sabem-no os nossos artistas que representam em série contínua, na unidade de concepção de arte que manifesta a unidade de concepção religiosa, as cenas do Antigo e do Novo Testamento².

Poder-se-á dizer que essas aproximações se fazem tardiamente, e há alguma coisa a reter desta observação; mas nem por isso o conjunto do culto hebraico deixa de andar na perspectiva do nosso. É o imperfeito que se orienta para o perfeito e que pertence ao mesmo gênero, diriam os filósofos. É a aurora, que pertence ao dia. O paganismo, digo o paganismo piedoso, é a escura claridade das noites, quando o peso das nuvens ou o peso voluntário do sono não a escurecem para os nossos olhos.

Unindo os dois, ter-se-á o ciclo completo das iluminações que preparam as claridades diurnas. Tudo o que mais tarde poderá vir a ser cristão por incorporação, em toda a amplitude do mundo antigo já é cristão por antecipação. A nossa Igreja católica, isto é, universal, mostra-se assim deveras universal, reunindo a amplitude dos tempos sob o imenso amplexo do seu desenvolvimento multiforme. Aquele que é revela-se, na sua Igreja, ao mesmo tempo Aquele que foi e Aquele que será.


E o que mais do que tudo manifesta esse caráter a um tempo envolvente e desenvolvedor, tradicional e progressista, numa palavra, eterno no curso do tempo, é o profetismo. Nele está a atadura do feixe. O profetismo na sua dupla forma, interprete do passado e precursor do futuro, é como a ponte que liga espiritualmente as diversas idades do mundo, que faz a antiguidade, remota ou próxima, comunicar com as esperanças, imediatas ou longínquas, que o grande movimento religioso que domina os tempos quer realizar. Eu já disse que o profetismo, no sentido lato do termo, não esteve ausente do próprio paganismo. Reconheceram isso os nossos Padres da Igreja. Mas, no sentido próprio, a profecia, que se antecipa à vida da Igreja e lhe dá como que uma duração retroativa, é apanágio de Israel.

Pelos seus gritos inflamados e pelos lampejos às vezes fulgurantes do seu pensamento religioso, os profetas de Israel transcendem a duração como transcendem o seu meio imediato. Atingem a eternidade e a imensidade onde o Evangelho entender de se colocar. Eles falam ao Homem, o Homem de todos os tempos e de todas as raças. São os sacerdotes da instituição religiosa universal, e, quando eles jazem no fundo do passado, olhando para o futuro, as suas esperanças traçam o caminho que tornarão a subir mais tarde as lembranças, nos interpretes inspirados da história.

Essas duas correntes de visões e de apelos são como que as grandes linhas que atravessam todo o teclado, num sentido ou noutro. Por causa disso, achareis nos profetas um esboço de dogmática, de moral e de culto espiritual muito superior ao que servia de base às instituições regulares do povo. A vida religiosa do seu tempo, que é neles o seu máximo, neles se excede a si mesma por um empréstimo antecipado tomado ao Evangelho. E é assim que eles são um nexo real, do mesmo modo que suas profecias são um nexo verbal, entre a antiga e a nova Aliança.

O reino de Deus que eles preconizam tem por sede as consciências, e o reino de Javé sobre Jerusalém não passa, por assim dizer, de um símbolo desse reino. Para eles Jerusalém é antes de tudo a pátria das almas. A vida interior, que será a essência do cristianismo, assume aos olhos deles uma importância primária; eles se incomodam menos com as sanções temporais, cientificadas de promessas que sentem obscuramente, mas que, de fato, são as do Evangelho.

O universalismo politicamente tão estranho a Israel, introduz-se praticamente neles com a ideia da vocação dos gentios e do acesso das “Ilhas” (como eles chamam às nações dispersas de longe) ao território religioso de Israel.

Essa Ilhas longínquas, quer dizer, o universo, aparecem ao olhar profético, para quem as perspectivas da história judaica e da história universal se confundem, como dependências da pequena Palestina onde eles bradam as suas esperanças. E esse juízo não é vão, visto como o futuro depende do passado que o prepara, visto como a joia, mesmo de valor incomparável em relação à cadeia, nem por isso deixa de estar suspensa à cadeia. Israel é a cadeia da joia evangélica; o profetismo é a pérola de espera inserida entre os elos.

Vozes do universo extraviadas num recanto do universo, vozes do infinito dos tempos localizadas num ponto dos tempos, os profetas pressagiam e preparam a grande voz que dirá:  Eu é que sou a Luz do mundo. Eu sou o Caminho; sou a Verdade; sou a Vida. Sou a Porta por onde devem passar todas as ovelhas humanas para irem aos pastos divinos.

Eis que avança, no limiar dos tempos novos, aquele que, último dos profetas e primeiro dos cristãos – João, o Batista – será o liame vivo entre os dois mundos. “Preparai, clamará ele, o caminho o Senhor, tornai retas as suas veredas”. Era o que o seu grupo religioso tinha feito; era o em que haviam colaborado remotamente todos os outros.

E chegado era o momento em que na sinagoga estreita, como no coração tenso e impotente dos homens, o futuro do mundo sufocava; mas ele aí achara até então um abrigo, e, sem abalo exaustivo, não sem crise entretanto – pois todo nascimento é uma crise -, ia passar do período das longas gestações para o período das manifestações, aguardando a era dos progressos indefinidos que só a eternidade deve encerrar.

Havendo-lhe todo o passado trançado assim o berço, havendo-lhe, ai! Talhado a cruz, mas também havendo recolhido raios de luz para a sua auréola, Aquele que devia vir podia vir.

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1- Cf. infra, Cap. V.2- Em Chartres, quatro vitrais apresentam a mesma ideia de maneira mais audaciosa, mostrando, cada um, um evangelista empoleirado nos ombros de um profeta.
 
PARA CITAR


RIOS, Jonadabe. A Igreja antes da Igreja - A. D. Sertillanges. Disponível em: www.apologistascatolicos.com
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