Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 384 - Ano 1994 - p. 210
Em síntese: Foi publicado um folheto protestante que caricatura a S. Eucaristia sob o título "O Biscoito da Morte". Quer derivar a Eucaristia de um pretenso mito egípcio, cujo herói seria o deus Sol Osiris; os sacerdotes egípcios consagrariam hóstias que se transformavam na carne do deus Osiris, segundo o autor do panfleto. Ora, tal mito não existe; o deus Osiris era um deus que ressuscitava os mortos. Ademais, o autor não existe; o deus Osiris era um deus que ressuscitava os mortos. Ademais, o autor do panfleto ousa dizer que os sacerdotes egípcios chamavam o dito milagre "transubstanciação" - o que é totalmente anacrônico, pois transubstanciação é palavra latina composta pelos teólogos da Idade Média, inspirados em categorias de pensamento grego aristotélico.
O panfleto encerra muitas outras inverdades, que revelam a ignorância e a agressividade cega do autor. É de lamentar que um cristão possa recorrer a erros históricos e a calúnias de tal monta para negar um dos artigos de fé mais enfaticamente contidos na S. Escritura; as fórmulas "isto é o meu corpo ... Isto é o meu sangue" (Mt 26,26-28) não podem ser tomadas em sentido metafórico, pois o sentido literal é respaldado pela promessa do pão que é carne, em Jo 6, 51-63.
Está circulando em língua portuguesa um panfleto de origem protestante norte-americana intitulado "O Biscoito da Morte". É uma sátira baixa e caricatural contra a Eucaristia. O autor baseia-se em falsas premissas e imaginárias suposições para denegrir algo que está na própria mensagem da Escritura e que é muito caro aos fiéis católicos. A obsessão agressiva cega o autor e leva-o a atestar sua ignorância sob capa de erudição. Infelizmente, porém, a ironia e a palhaçada da apresentação podem influir em leitores pouco críticos, causando-lhes danos na fé. Verifica-se que o autor, proselitista como os modernos sectários, quer conquistar novos membros para o protestantismo, recorrendo mesmo à mentira e à calúnia.
Eis por que passaremos em revista os principais tópicos do panfleto.
A TESE DO AUTOR
O autor apresenta a fé na real presença de Jesus Cristo na Eucaristia como sendo invenção do Papa e de seus assessores. Está dito aí que se puseram a ensinar isso a fim de conquistar poder sobre os fiéis; quem não acreditasse, seria punido com a morte, como aconteceu na Inquisição. A fé na real presença de Cristo no pão eucarístico terá sido derivada de um mito dos egípcios, segundo o qual os sacerdotes consagravam hóstias que eram tidas como a carne do deus Sol chamado Osiris; assim como os sacerdotes egípcios terão conseguido dominar os crentes ensinando-lhes o sentido do biscoito, assim o Papa terá conseguido dominar os cristãos. Todavia, a leitura da Bíblia deveria abrir os olhos dos católicos, fazendo que deixem a Igreja Católica e se tornem protestantes!
Detenhamo-nos sobre tal mito e as alegações do autor.
A ORIGEM DA S. ESCARISTIA
O Mito de Osiris: Despropósitos
Antes do mais, é de estranhar a estória "das hóstias transformadas na carne do deus Sol Osiris". Por mais de um motivo:
a) nenhuma das mais abalizadas fontes de mitologia refere tal lenda de Osiris;
b) nem se encontra o binômio "Deus Sol = Osiris".
Na verdade, eis o que, sinteticamente, se pode apurar a respeito do mito de Osiris:
Osiris, em egípcio Ouser, deus do panteon egípcio, está envolvido no seguinte enredo: Osiris era um bom rei da terra, que ensinava aos homens a agricultura, a viticultura e as artes. Sofreu a inveja de seu irmão Seth, que, no de correr de um banquete, o encerrou num cofre e o atirou no rio Nilo; a sua irmã e esposa Isis encontrou-o no litoral de Byblos (Fenícia) e o levou de volta para o Egito. Foi, de novo, capturado por Seth, que o esquartejou em quatorze pedaços, pedaços que foram espalhados pela terra do Egito. Isis foi então procurar esses resquícios de cadáver juntamente com sua irmã Nephthys (esposa de Seth) e, com a ajuda de Anubis, reconstituiu o corpo do deus Osiris. Todavia, Isis e Nephthys foram transformadas em aves; abanaram com as suas grandes asas o cadáver de Osiris para restituir-lhe a vida. Assim Osiris ressuscitou. Isis concebeu então um filho chamado Horus; educou-o secretamente nos pântanos do delta do Nilo, receando o castigo que Seth, irmão de Osiris, podia infligir ao menino. Feito homem, Horus reclamou a sua herança e provocou Seth para travarem um combate a dois. Nestas circunstâncias, Re e o tribunal dos deuses puseram-se a julgar o caso: decretaram que Horus receberia a realeza terrestre que tocava a seu pai, ao passo que Osiris governaria o reino subterrâneo dos bem-aventurados.
Desta lenda os egípcios deduziram uma lição importante: todo cadáver sobre o qual são praticados os ritos que foram aplicados ao corpo de Osiris, juntamente com as mesmas fórmulas mágicas, há de voltar à vida. Tal procedimento se chamava "osirianização"; cada defunto podia tornar-se um novo Osiris. Assim, Osiris tornou-se o deus da ressurreição. Todos os anos, no mês de Khoiak, celebravam-se "mistérios", isto é, representações sagradas que reproduziam o assassinato, o enterro e a ressurreição de Osiris. Cada egípcio era exortado a peregrinar, ao menos uma vez na vida, até um dos grandes santuários osirianos do Egito (Buris, Abydos ...).
Como se vê, a estória está bem longe de mencionar hóstias transformadas em carne de Osiris (...)
c) Além disso, note-se o disparate encontrado em outra passagem do panfleto:
"Os sacerdotes egípcios chamavam esse milagre de "transubstanciação", e o povo comia seu Deus" (as páginas do panfleto não são numeradas).
A palavra "transubstanciação" é oriunda do latim transubstantiatio, e não do egípcio. Os egípcios não conheceram tal vocábulo latino (o latim é língua posterior ao idioma dos antigos egípcios) nem conheceram o conceito veiculado por tal vocábulo, pois o conceito supõe a filosofia de Aristóteles (+ 322 a.C.) desenvolvida pelos teólogos escolásticos da Idade Média. Com efeito: substância, no caso, significa o que sub-stat, o que está sob os acidentes. Sim, Aristóteles distinguia, em cada ser visível, os acidentes, que são mutáveis (cor, tamanho, odor, localização, peso ...) e aquilo que é o suporte ou sujeito dos acidentes (tal seria a substância, que fica sendo invisível). Em conseqüência, a palavra transubstanciação significa a mudança (trans) da substância sem mudança dos acidentes. É o que se dá precisamente na consagração eucarística: ficam os acidentes (cor, tamanho, gosto, odor ...) do pão e do vinho, mas a substância do pão e do vinho se converte na substância do corpo e do sangue de Cristo. Tal noção, supondo categorias de pensamento grego alheio aos egípcios, nunca foi professada pelos sacerdotes da mitologia grega.
d) Outra falsa afirmação relacionada com a mitologia egípcia é a seguinte: "IHS significam Isis, Horo e Seth, deuses do Egito".
Quem diz isso mostra total ignorância do assunto: IHS não são caracteres egípcios, mas, no caso, são letras gregas: o H é a letra eta (e longo). IHS são os caracteres iniciais do nome grego IHSOYS (Jesus); por conseguinte, nem na língua egípcia nem na latina se deve procurar o sentido de tal abreviatura.
e) O panfleto refere como sendo palavras da consagração: "Hocus Pocus Domi Nocus" - o que nada significa em língua alguma. O leitor desprevenido poderá julgar que é a fórmula latina da consagração eucarística. Na verdade, a Eucaristia começou a ser celebrada no século I não em latim, mas em aramaico, grego e línguas orientais; a fórmula grega é a que se encontra nos Evangelhos sinóticos: "Touto estin to soma mou e Touto estin to haima mou" (Mt 26, 26.28).
As Fontes Bíblicas da Eucaristia
Os protestantes, que dizem seguir fielmente as Escrituras, iludem-se a si mesmos e iludem seus seguidores. Com efeito, a origem da Eucaristia não está numa época tardia da história da Igreja, nem está no Ocidente (em Roma, sede do Papa), mas está no Oriente e na própria Bíblia. Basta ler a Escritura Sagrada sem preconceitos e sem recorrer à tradição de Lutero, Calvino, Zvínglio, Knox, Smith, Wesley ..., para perceber claramente que Jesus quis deixar-nos um pão que é o seu corpo e uma bebida que é o seu sangue. Tenham-se em vista os textos de Jo 6, 51-71: a promessa do pão da vida; Mt 26, 26-29; Mc 14, 22-25; Lc 22, 19s; 1Cor 11, 23-25: os relatos da instituição da Eucaristia.
Memorial
Os protestantes negam a real presença de Jesus na Eucaristia, apesar da evidência decorrente dos textos sagrados, baseando-se na palavra memória, citada em Lc 22, 19:
"Na última ceia, Jesus disse que, quando vocês comem o pão e tomam o vinho, devem fazer isso em memória dele" (tradução encontrada no panfleto).
A palavra memória traduz, no caso, o grego anamnesis e o hebraico zikkarón. Ora, tais vocábulos, segundo a mentalidade semita que os concedeu, não indicam mera atividade psicológica (o nosso recordar-se), mas, sim, um recordar que efetua algo ou que transforma a realidade. Tenhamos em vista os seguintes textos bíblicos, conforme os quais Deus se lembra de determinadas pessoas e lhes concede a sua graça e misericórdia: "Quando Deus destruiu as cidades da planície, Ele se lembrou de Abraão e retirou Lote do meio da catástrofe" (Gn 19,29); "Então Deus se lembrou de Raquel; Ele a ouviu e a tornou fecunda" (Gn 30,22); "Lembra-te dos teus servos Abraão, Isaac e Jacó, aos quais juraste por ti mesmo, dizendo: "Multiplicarei a vossa descendência como as estrelas do céu ..." Javé então desistiu do castigo com o qual havia ameaçado o povo" (Ex 32,13s). Ver também Gn 8,1; 1 Sm 1,11-19; 25,31.
Mesmo entre um homem e seu semelhante usava-se a fórmula "lembra-te", para pedir um favor; assim disse José no cárcere do Faraó ao copeiro que seria libertado em breve: "lembra-te de mim, quando te suceder o bem, e sê bondoso para falar de mim ao Faraó para que me faça sair da prisão" (Gn 40, 14).
O Novo Testamento é herdeiro dos conceitos de "memória" e "recordar-se" do Antigo Testamento. Assim, por exemplo, no canto de Maria se lê: "Socorreu Israel seu servidor, lembrado de sua misericórdia" e no de Zacarias: "... para fazer misericórdia aos nossos pais, lembrado de sua santa aliança ... suscitou-nos uma força de salvação" (Lc 1,69-72). São significativas também duas passagens de conversão de Cornélio, centurião romano: "Tuas orações e tuas esmolas se ergueram como memorial diante de Deus" (At 10,4) e: "Tua oração foi atendida, Cornélio, e de tuas esmolas a memória esta presente diante de Deus" (At 10, 31). As orações e as esmolas de Cornélio ficaram quase como um monumento na presença de Deus e prepararam a intervenção benigna do Senhor. - Também no Novo Testamento o homem, ao rezar, usa a fórmula "Lembra-te"; assim disse o bom ladrão: "Jesus recorda-te de mim, quando chegares ao teu reino" (Lc 23, 42). É à luz desse significado dinâmico e criativo das palavras "memória, memorial, recordar-se" que há de ser entendido o mandato confiado por Jesus aos Apóstolos na última ceia: "Fazei isto em memória (anámnesin) de mim" (1Cor 11,24s). Na base destes estudos lingüísticos, deve-se dizer que a celebração da ceia do Senhor nos séculos cristãos não é mero símbolo evocativo do passado, mas vem a ser a atualização ou a re-presentação (o tornar presente de novo) do sacrifício do Senhor oferecido na Sexta-Feira Santa sobre o Calvário. Ver a propósito nosso Curso de Liturgia. Módulo 8 (Caixa Postal 1362, 20001-970 Rio - RJ).
A INQUISIÇÃO
O autor não podia deixar de falar da Inquisição:
"De 1200 a 1808 incontáveis torturas e mortes rondaram o mundo católico, fazendo 68 milhões de vítimas. Satanás mantinha a Igreja Católica Romana sob seu absoluto controle."
Antes de qualquer outra observação, notemos que os medievais e pós-medievais até o século XIX não faziam estatísticas precisas dos casos examinados pela Inquisição. É inútil procurar nos arquivos da Inquisição dados numéricos que permitam uma estimativa global. Encontram-se apenas relatórios isolados, cujos números são muito menos elevados do que aqueles que a fantasia dos historiadores tendenciosos tem apregoado. Tenhamos em vista os dois registros seguintes:
Consta que o tribunal de Pamiers, de 1303 a 1324, pronunciou 75 sentenças condenatórias, das quais apenas cinco mandavam entregar o réu ao poder civil (o que equivalia à morte); O Inquisidor Bernardo de Gui em Tolosa, de 1308 a 1323 , proferiu 930 sentenças, das quais 42 eram capitais; no primeiro caso, a proporção é de 1/15; no segundo caso, é de 1/22.
De resto, a Inquisição é fenômeno que só se pode entender devidamente no respectivo contexto histórico. Com efeito, os medievais tinham profunda consciência do valor da alma e dos bens espirituais. Tão grande era o amor à fé esteio da vida espiritual) que se considerava a deturpação da fé pela heresia como um dos maiores crimes que o homem pudesse cometer. Essa fé era tão viva e espontânea que dificilmente se admitiria que alguém viesse a negar com boas intenções um só dos artigos do Credo. Tenham-se em vista as palavras de S. Tomás de Aquino (+ 1274):
"É muito mais grave corromper a fé, que é a vida da alma, do que falsificar a moeda, que é um meio de prover à vida temporal. Se, pois, os falsificadores de moedas e outros malfeitores são, a bom direito, condenados à morte pelos príncipes seculares, com muito mais razão os hereges, desde que sejam comprovados tais, podem não somente ser excomungados, mas também em toda justiça ser condenados à morte" (Suma Teológica) II/II, 11, 3c).
A argumentação do S. Doutor do princípio (sem dúvida, autêntico em si) de que a vida da alma vale mais do que a vida do corpo. Se, pois, alguém pela heresia ameaça a vida espiritual do próximo, comete maior mal do que quem assalta a vida corporal; o bem comum então exige a remoção do grave perigo (ver também S. Teológica II/II, 11, 4c).
CONCLUSÃO
É difícil compreender que um cristão possa atacar outros cristãos na base de tanto ódio e tanta falsidade. Não é o genuíno amor de Cristo que inspira tal atitude. É a paixão preconcebida e obsessiva.
A leitura do panfleto mostra também como é errôneo o princípio protestante: "Somente a Bíblia". A Bíblia é inseparável da palavra oral, que a interpreta e atualiza; ela, por si mesma, não se explica nem elucida. Ora, os protestantes lêem a Bíblia dentro da tradição oral iniciada pelos reformadores do século XVI, ao passo que os católicos a lêem dentro da Tradição que emana de Jesus Cristo e dos Apóstolos e chega até nós; assim, no tocante à Eucaristia desde os primeiros decênios da Igreja, há testemunhos de fé na real presença de Cristo no sacramento do altar; essa fé foi sendo transmitida ininterruptamente até o século XX. Será que só no século XVI os cristãos começaram a entender autenticamente as palavras de Jesus em Mt 26, 26-29; Mc 14, 22-25; Lc 22, 19s; 1Cor 11, 23-25? Será que somente Lutero e seus companheiros de reforma entenderam corretamente o sermão referente ao pão da vida em Jo 6, 51-71? Será que um protestante tem o direito de ignorar a Bíblia e a Tradição a ponto de forjar uma lenda mal alinhavada e inconsistente para querer provar que a Eucaristia teve origem no Ocidente (em ambiente latino) numa época tardia da história tardia da história da Igreja?
A caridade cristão para com sectários tão cheios de ódio e falsidade manda que os católicos rezem por eles, unindo-se à oblação de Cristo, que se oferece ao Pai em cada S. Missa pela salvação do mundo (... também pela dos sectários protestantes).
O texto deste artigo existe como opúsculo próprio intitulado "O Biscoito da Morte". Pedidos à Escola "Mater Ecclesiae", Caixa Postal 1362, 20001-970 Rio (RJ). Aí também foi editado o opúsculo "por que não sou Aquariano (Nova Era)?".
Nenhum comentário:
Postar um comentário