6. Tu, você(s), o senhor
Em vez de adotar o habitual tratamento tu e vós, a BLH recorre a Tu (quando é interpelado o Senhor Deus), você(s) (quando é interpelado um subalterno), o senhor (quando Jesus ou um chefe é interpelado). Este tratamento suscita confusões e depaupera o texto sagrado, banalizando as suas expressões, como tem revelado a praxe recente. Ademais não se vê motivo para abandonar tu e vós, como se fossem incompreensíveis às pessoas simples (sabe-se que estas recorrem ocasionalmente a tais prenomes). Para que uma tradução da Bíblia seja inteligível à gente simples, não é necessário que reproduza o expressionismo e o vocabulário limitados das pessoas de pouca cultura, pois estas entendem vocábulos de um linguajar mais burilado, embora não os usem. Basta lembrar que o jornal falado da televisão e do rádio recorre a linguagem mediana, nem sempre reproduzida pelo povo, mas significativa para este (daí o enorme índice de audiência que alcança).
7. Ligar-desligar
Em Mt 16, 19, diz Jesus a Pedro, conforme a BLH: "Eu lhe darei as chaves do Reino do céu; o que você proibir na terra, será proibido no céu, e o que permitir na terra será permitido no céu".
Os tradutores puseram "proibir-permitir" em lugar de "ligar-desligar". Ora o binômio "ligar-desligar" (em aramaico, asar e sherá ou hithir) é da linguagem técnica rabínica; significa, antes do mais, atos de jurisdição, pelos quais os rabinos excomungavam (ligavam) ou absolviam da excomunhão (desligavam). Ulteriormente significava decisões doutrinárias ou jurídicas, que o proibiam, declaravam ilícito (ligavam) ou permitiam, declaravam lícito (desligavam). - Donde se vê que a tradução "proibir-permitir" não abrange todo o conteúdo do texto original, pois o reduz a matéria de Moral, quando na verdade, o que Jesus entrega a Pedro conforme o texto original, é o poder de governar a Igreja tanto no plano jurídico como no da Moral e no da doutrina. A própria imagem das chaves, que Jesus consigna a Pedro, lembra a jurisdição, ou seja, o poder de abrir e fechar a comunhão com a Igreja em nome do Senhor Jesus. As sentenças de Pedro são confirmadas pelo próprio Deus.
Em consequência, teria sido necessário conservar o binômio "ligar-desligar" na tradução; o seu significado técnico poderia ser explicado no vocabulário da BLH (pp. 439-447). Qualquer tentativa de substituir "ligar-desligar" equivale a uma interpretação, que pode ser tendenciosa, como é de fato no caso da BLH. A propósito do significado de tal binômio na teologia dos rabinos antigos, ver PR 132/1980, pp. 538s, 543-437.
As mesmas observações devem ser feitas a respeito de Mt 18, 18, onde reaparece o binômio "ligar-desligar", desta vez para designar o poder de jurisdição e magistério que toca aos Apóstolos reunidos em colegiado.
8. Sangue
Em Rm 3, 25; 5, 9; Ef 1, 7; 2, 13; Ap 1, 5; 5, 9 a palavra grega haima é traduzida não por sangue, como seria de prever, mas por morte na cruz. - Ora, se bem que a morte possa em alguns casos lembrar sangue, não se deveria deixar de usar o vocábulo sangue em tais passagens, pois é este que põe em relevo o valor da morte de Cristo como sacrifício ou como vítima de expiação pelos pecados do mundo. O caráter sacrificial da morte de Cristo é essencial à mensagem do Novo Testamento. Aliás, em At 20, 28; Hb 10, 29; 1Pd 1, 19 os tradutores verteram haima por sangue; a mesma palavra grega é, pois, tratada de modo desigual na tradução da BLH.
9. Espiritualmente pobres
A primeira bem-aventurança (Mt 5, 3) reza na BLH: "Felizes os que sabem que são espiritualmente pobres... "Ora a primeira bem-aventurança não consiste em saber..., mas, sim, em viver; ela é dirigida àqueles que têm um coração simples, humilde e despretensioso como é o dos pobres (anawin) que o Antigo Testamento muito louva na medida em que são os fiéis de Deus, despojados de qualquer ilusão a respeito da escala dos valores; os anawin são os que confiam em Deus, e não em si, como fazia S. Teresinha do Menino Jesus, que viveu intensamente a primeira bem-aventurança.
10. Ulteriores observações
Verifica-se que em várias passagens o texto sagrado assume características banais. Por exemplo:
1. O vocábulo óleo é sistematicamente substituído por azeite, que é um tipo de óleo usado freqüentemente em cozinha. Assim Jesus diz ao fariseu Simão:
"Você não pôs azeite perfumado na minha cabeça" (Lc 7, 46), em vez de "Não me derramaste óleo sobre a cabeça".
Em Ex 30, 31 lê-se: "Esse azeite de ungir deverá ser usado no meu serviço religioso".
Em Hb 1, 9 omite-se "o teu Deus te ungiu com óleo de alegria" para se dizer: "...a alegria de receber uma honra..."!
Em Tg 5, 14 lê-se: "Os presbíteros ponham azeite na cabeça do enfermo em Nome do Senhor", em lugar de: "...unjam o enfermo com óleo em nome do Senhor".
2. O verbo tomar cede a pegar, que é por vezes verbo de linguagem banal ("pegou e disse", "pegou e foi"...", "pegou e fez..."). Ver Mt 2, 20; Mt 26, 26s; Mc 14, 22s; Lc 22, 17-19. Ora não se pode dizer que tomar seja palavra erudita ou desconhecida ao povo; o que é certo, é que pegar é não apenas popular, mas até mesmo vulgar e pouco elegante, principalmente numa tradução bíblica. Veja-se especialmente Mt 25, 1-3:
"Naquele dia o Reino do céu será como dez moças que pegaram as suas lamparinas e saíram para se encontrar com o noivo. Cinco eram sem juízo, e cinco ajuizadas. As moças sem juízo pegaram suas lamparinas, mas não arranjaram óleo de reserva".
A propósito pergunta-se: por que moças e não virgens (parthenoi), como está no original?
3. Em Tg 2, 20 lê-se: "Seu tolo!", quando outras edições traduzem por "Homem insensato!"
Em Mc 5, 35 e Lc 8, 49 lê-se: Seu Jairo em vez de Senhor Jairo - o que banaliza o texto.
4. O vocábulo Evangelho é geralmente omitido em favor de Boa Notícia (cf. Mt 4, 23; Mc 1, 1.14; 9, 35) expressão que enfraquece muito o significado do original; se o povo cristão não está familiarizado com o que é Evangelho, os seus pastores têm que lho ensinar e não omitir a palavra.
5. O Vocabulário existente no final da edição da BLH, pp. 1441-1451, abordar os termos "bispo, presbítero, diácono", explica os ministérios da Igreja simplesmente como serviço de direção, liderança e administração sem referência alguma à sacramentalidade dos mesmos - o que tem sabor protestante. Ademais a palavra epískopos é traduzida por bispo, o que não ressalva a índole singular dos epískopoi a que se referem os escritos do Novo. Melhor teria sido dizer epíscopos em português. Cf. Fl 1, 1; 1Tm 3, 1s; Tt 1, 7...
Conclusão
Deixando de lado outras várias observações, concluímos que a BLH não é simplesmente uma tradução, mas vem a ser, em mais de um caso, uma interpretação. Verdade é que todo tradutor tem não raro que interpretar o texto que ele verte. Todavia este fato ocorre com mais freqüência e mais sérias conseqüências quando o tradutor, de caso pensado, procura evitar vocábulos consagrados pelo uso, como se dá na BLH. E diga-se de passagem: a interpretação dada ao texto da BLH, cá e lá, é evidentemente protestante. - Daí não se poder recomendar o uso da BLH nem para católicos, nem para protestantes, pois uns e outros necessitam, antes do mais, de ler o texto bíblico na sua identidade tão objetiva quanto possível.
Ademais pode-se indagar se é oportuno usar linguagem rude (às vezes incorreta) na tradução da S. Escritura. Está claro que esta não deve ser proposta ao grande público em linguagem rebuscada ou "preciosa", mas, apesar de tudo, há de valer-se de vocabulário e estilo de bom timbre, condizentes com a dignidade da mensagem bíblica. O próprio povo aspira a elevar seu nível de cultura, de modo que só poderá mostrar-se grato a quem o ajude a compreender um bom linguajar português que não deixe de ser simples. Julgamos, pois, que não se devem evitar as palavras técnicas do vocabulário bíblico como Evangelho, justificação, mistério... e outras muitas, pois têm suas conotações que outras, tidas como equivalentes, não possuem; o que elas possam apresentar de insólito, seja explicado ao pé da página do texto bíblico ou em glossário próprio, de modo que percam sua estranheza para o leitor não iniciado.
Eis o que nos convinha observar, em termos sumários, a respeito da BLH.
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