Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
D. Estevão Bettencourt, osb.
Nº 329 - Ano 1989 - Pág. 457
Em síntese: O homem e Deus, na época contemporânea, não estão mais em competição mútua, como se pensava no século passado. O ser moderno não quer dizer ser religioso. Acontece, porém, que a religião hoje reaparece após a onda de ateísmo do século passado (...) reaparece desligada da razão ou na base de fortes emoções e sentimentos. Isto se deve, em grande parte, ao fato de que as soluções racionais parecem insuficientes para atender ao homem e seus problemas hoje; a ciência já não oferece o que dela esperou o cientificismo de outras épocas; donde o recurso à magia, ao falso milagre, ao extraordinário, que os homens querem tornar ordinário ou cotidiano. Sem a bússola da razão, o senso religioso pode degenerar no fantasioso, imaginativo e até no desumano, como acontece no fanatismo e nos grupos pretensamente orientados por vozes e mensagens do além. A razão jamais poderá compreender as verdades da fé, mas poderá sempre examinar e testar as credenciais da mesma.
O fenômeno religioso em nossos dias chama a atenção. Ateísmo e ondas de misticismo caminham lado a lado; pode-se mesmo dizer que há um surto quase violento de religiosidade emotiva e irracional, enquanto a fé cristã continua a proclamar sua mensagem perene tentando utilizar os moldes da cultura moderna.
Desde 1965 (ano terminal do Concílio do Vaticano II), existe em Roma um "Secretariado para o Diálogo com os Não Crentes", encarregado de estudar o ateísmo e a indiferença religiosa. Em 1988, o S. Padre João Paulo II deu a esse órgão o título de "Pontifício Conselho para o Diálogo com os Não Crentes", confirmando suas atribuições e sugerindo-lhe contactar assiduamente as correntes do pensamento contemporâneo. O Presidente desse Conselho é o Cardeal francês Paul Poupard, prelado de grande cultura, Reitor do Institut Catholique de Paris, autor de obras referentes à fé católica e ao pensamento de nossos dias.
Em 1985, o Conselho para o Diálogo com os Não Crentes empreendeu um inquérito junto às Conferências Episcopais do mundo inteiro, às Universidades Católicas e a personalidade de renome a respeito da incredulidade e da indiferença religiosa. Tal inquérito trouxe à tona quadros assaz diversificados, espelho da realidade contemporânea: assim originou-se um relatório emanado do Conselho, do qual vão, a seguir, extraídos os tópicos mais relevantes.
O panorama religioso do nosso mundo
O relatório considera cinco setores da humanidade contemporânea.
Países socialistas
A ideologia fundada sobre o materialismo histórico e dialético parece estar no seu ocaso. Ainda ocupa espaço notável, porque sustentada pelos governantes e mentores de tais países. Mas a fachada impressionante e o triunfalismo das palavras e da propaganda escondem uma situação real bem diferente: o edifício construído pela ideologia está vazio, desertado pelas inteligências, desmentido pelos fatos... Os respectivos governantes vão compreendendo que as massas não os seguem; o desmoronamento da ideologia é patente aos olhos de todos. O homem, desiludido, se vê a braços com a inquietude, a solidão e a angústia.
O Ocidente industrializado e tecnológico
Está contaminado pela mentalidade consumista e pelo hedonismo (ou a procura do prazer). Em conseqüência, muitos cidadãos questionam o sentido da vida, cujos grandes objetivos parecem ser tão somente o pragmatismo utilitário e a procura da eficiência a todo custo. Daí se originam o relativismo moral, a indiferença religiosa e o secularismo. O homem que aceite tal modo de pensar e viver, se torna incapaz de experimentar valores transcendentais e procura sua realização no sucesso econômico e no prestígio social.
Esses bens ilusórios não podem deixar de gerar o sentido de solidão, a insatisfação posta em demanda de algo maior, melhor e mais duradouro; as capacidades espirituais do homem emergem com sua sede, aberta ou dissimulada, de respostas mais adequadas para os anseios humanos.
A tecnologia parece "mecanicizar" a mentalidade dos homens, fechando-os em parâmetros materiais, pilotados unicamente pelas conquistas da técnica. Todavia esse progresso meramente horizontal faz ameaças mortais e acarreta perigos nunca dantes imaginados.
Como quer que seja, os países do bem-estar abrem, a seu modo, o campo para o debate das grandes questões relativas ao sentido da vida e da morte, do homem e da Ética.
América Latina
O crescente hiato entre ricos e pobres cria graves tensões entre as duas ideologias antagônicas: o capitalismo liberal, cuja única lei é o ganhar mais, dentro de uma visão individualista e utilitária do homem, e o coletivismo marxista, que professa o mito da revolução e a mística da luta de classes. Sobre este pano de fundo, a Igreja aponta aos povos os valores transcendentais, propondo-lhes um humanismo autenticamente cristão contido na Doutrina Social de Encíclicas e documentos oficiais (do qual o último, muito concreto e atualizado, se intitula Sollicitudo Rei Socialis).
África
Na África estão em voga certas ideologias baseadas no retorno aos valores tradicionais (a solidariedade na família, na tribo, a cultura aborígene, os idiomas nativos...). São, porém, dominadas pelo totalitarismo de Estado e o absolutismo que regem certos países. Nesse contexto a Igreja emerge como garantia do respeito às pessoas e da liberdade dos povos. O marxismo-leninismo, que governa várias nações africanas, interessa tão somente à classe dirigente e a alguns setores da cultura, enquanto o povo lhe fica estranho, impregnado de sua religiosidade tradicional. A luta de classes é vista por muitos cidadãos como fator de dissolução da solidariedade e da comunhão existentes entre os membros do mesmo clã - o que favorece a irresponsabilidade e a perda da identidade étnica.
Ásia
A Ásia, berço de religiosidade e sabedoria milenares, conserva firmemente as suas tradições, mas também se acha penetrada pelo marxismo, apesar dos desastres provocados por esta ideologia em alguns países. Em tal continente, a Igreja prega a sua mensagem de salvação, em diálogo com as antigas tradições religiosas e culturais.
Após este percurso panorâmico, parece oportuno dizer algo sobre ideologia, já que o tema foi mais de uma vez mencionado anteriormente.
Ideologia e crença
Ideologia significa literalmente estudo das idéias. Ideólogo era, nos séculos passados, o cultor de tal estudo. Hoje ideologia designa as idéias dominantes ou o sistema de pensamento de um grupo social, que tudo vê unilateralmente, ou seja, em função da preservação da situação vigente ou, vice-versa, em função da transformação da mesma. Pode haver ideologia também no setor da religião, onde se fala, por exemplo, de "ideologia islâmica".
As ideologias costumam apelar para a violência, instigada por certa intuição "mística", pois a ideologia mobiliza as aspirações, as energias, os interesses, os sonhos de uma sociedade, propondo um futuro belo e risonho. A ideologia tende a oferecer a explicação última, absoluta e obrigatória de todas as indagações de um grupo. A este título, as ideologias têm certa analogia com os mitos e com a própria religião. Na Carta Octogesima Adveniens (n.º 28) Paulo VI dizia que a ideologia pode tornar-se "um novo ídolo". O Documento de Puebla, emitido pelo episcopado latino-americano em 1979, por sua vez, assim se refere às ideologias como "religiões leigas":
"Entre as múltiplas definições que se podem propor, chamamos aqui ideologia toda concepção que ofereça uma visão dos diversos aspectos da vida, desde o ponto de vista de um grupo determinado da sociedade. A ideologia manifesta as aspirações desse grupo, convida para certa solidariedade e combatividade e fundamenta sua legitimação em valores específicos. Toda ideologia é parcial, já que nenhum grupo particular pode pretender identificar suas aspirações com as da sociedade global (...).
As ideologias trazem em si mesmas a tendência a absolutizar os interesses que defendem, a visão que propõem e a estratégia que promovem. Neste caso, transformam-se em verdadeiras "religiões leigas". Apresentam-se como uma explicação última e suficiente de tudo e se constrói assim um novo ídolo, do qual se aceita, às vezes, sem que as pessoas se deem conta, o caráter totalitário e obrigatório. Nesta perspectiva não é de estranhar que as ideologias tentem instrumentalizar pessoas e instituições a serviço da eficaz consecução de seus fins. Eis o lado ambíguo e negativo das ideologias (...).
Isto lhes confere uma mística especial e a capacidade de penetrar os diversos ambientes de modo muitas vezes irresistível. Seus slogans, suas expressões típicas, seus critérios, chegam a marcar profundamente e com facilidade mesmo aqueles que estão longe de aderir voluntariamente a seus princípios doutrinais. Desse modo, muitos vivem e militam praticamente dentro dos limites de determinadas ideologias sem haver tomado consciência disso... Tudo isto se aplica tanto às ideologias que legitimam a situação atual, como àquelas que pretendem mudá-la" (n.º 535-537).
Os psicossociólogos mostram como a ideologia pode suscitar a crença cega e a esperança acrítica de um grupo. Este, em conseqüência, rejeitará como inimigo do povo todo indivíduo que não compartilhe tal modo de pensar. A ideologia inspira os militantes e revolucionários que, consagrando-se ao seu serviço, encontram motivação suficiente para levá-los até o sacrifício da própria vida.
As ideologias - tanto as liberais como as coletivistas, marxistas - apoiam-se sobre uma interpretação irracional da realidade ou dos mecanismos econômicos e sociais. Adam Smith (1723-90), por exemplo, um dos primeiros mentores do capitalismo liberal, dizia que este é a "mão invisível" da Divindade e o penhor do bem-estar coletivo.
Conclui-se, pois, que nosso mundo está marcado por um paradoxo: de um lado exalta-se o acume e o exercício da razão (na ciência, na técnica e na Filosofia racionalista...); de outro lado, porém, seguem-se correntes emotivas, desligadas da bússola da razão e, por isto, tendentes a escravizar o homem.
A nova religiosidade
Tendo abandonado, em parte, a fé que berçou a civilização ocidental ou o Cristianismo, para aderir a cosmovisões materialistas de direita ou de esquerda, o homem contemporâneo se vê frustrado, esvaziado, descrente de soluções humanas para seus múltiplos problemas e, por isto, propenso a procurar no além ou na mística novas respostas. Assim, ao passo que no século passado e nos primeiros decênios deste se punha o dilema "Ou Deus ou o homem", "Ou a fé ou a ciência", em nossos dias já se diz "Deus e o homem", "A ciência e a fé". Todavia nem sempre se dá o retorno ao Cristianismo, que aprecia a razão como via condutora ao Transcendental, mas muitos recorrem diretamente ao "transcendental" por vias irracionais e emotivas; dir-se-ia que estão céticos em relação à razão para explicar ao homem os mistérios da vida e do mundo.
A procura do sentido da vida e do porquê viver, lutar, sofrer, morrer... leva naturalmente a Deus, visto que as respostas imanentes são insatisfatórias. A nova religiosidade emotiva ou meio-irracional assume três aspectos diferentes:
1) "a religião do sucesso". Apresenta a crença como penhor seguro de sucesso material, de cura de doenças, superação de carências econômicas... A doença, a pobreza, as desgraças seriam obras de Satanás, que deve ser contido mediante a força da fé e exorcismos. Os fracos e infelizes seriam tais por não terem fé. A riqueza e a saúde serão a prenda de quem foi libertado do Maligno. Tem-se aí um "materialismo teológico" ligado às "igrejas eletrônicas", em grande parte norte-americanas. O pentecostalismo e o neo-pentecostalismo protestantes estão neste rol, que atrai principalmente as pessoas mais desprovidas de recursos materiais ou mais incapacitadas de prover às suas necessidades materiais; todavia não se excluem pessoas abastadas, que estejam à procura de soluções mágicas para seus problemas. - São correntes religiosas de pouco conteúdo doutrinário e de grande efervescência sentimental, que reduzem seu culto muitas vezes ao atendimento dos numerosos clientes que as procuram. Tal é, entre outras, a Igreja Universal do Reino de Deus, fundação brasileira recente, que vem crescendo na base da apelação para os sentimentos e as emoções e do "exorcismo" curandeiro.
2) O revisionismo bíblico. Há correntes que fazem uma radical reinterpretação da Bíblia, acrescentando-lhe, por vezes, uma nova revelação, como são a dos Mórmons a das Testemunhas de Jeová, a do Moonismo e... quiçá a dos Adventistas. Entre os católicos, registram-se certos grupos dissidentes, inspirados por "aparições" e "visões" não autênticas como a de El Palmar de Troya,¹ a do Monte Santo em Guiricema de Minas. Encontram certa ressonância não só entre os mais pobres, mas também na classe média.
3) As religiões de cunho panteísta, geralmente de origem oriental. Assumem várias modalidades: Hare Krishna, Meditação Transcendental, Gnosticismo, Esoterismo, Rosa-Cruz (embora esta diga que não é religião, faz as vezes de uma cosmovisão religiosa panteísta), Teosofia, Antroposofia, Logosofia... O panteísmo ou o monismo é, pode-se dizer, uma forma velada de ateísmo, pois professa que Deus, o homem e o mundo são da mesma substância ou são divinos, de modo que o homem pode mais e mais exercer poderes próprios da Divindade. O panteísmo costuma atrair (não exclusivamente) pessoas de certa cultura, que não querem renegar a religião, mas (consciente ou inconscientemente) não aceitam a dependência do homem em relação a Deus Criador e Transcendente. A tese da reencarnação costuma estar associada a este tipo de concepção religiosa, pois ela professa a auto-salvação do homem mediante sucessivas reencarnações.
A corrente New Age (Nova Era), já mencionada em PPR 325/1989, pp. 278-283, é uma forma sincretista que pretende ultrapassar e substituir o Cristianismo, propondo um panteísmo místico.
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