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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Como os israelitas escreviam a história? - EB

Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"


Dom Estevão Bettencourt, osb



Nº 473 - Ano 2001 - p. 434

Em síntese: O presente artigo refere as peculiaridades da historiografia israelita, que era esmerada no Oriente antigo, mas seguia padrões diferentes dos modernos critérios historiográficos.

Os antigos povos do Oriente, por muito elevado que fosse o seu grau de cultura, pouco prezavam a história (...). Era assaz generalizada a tese de que os séculos constituem ciclos fechados, os quais se repetem regularmente; acontecimentos já verificados no pretérito se reproduzirão em época futura; a sucessão dos tempos jamais conhecerá remate ou consumação final. Representavam esta concepção recorrendo à figura de uma serpente enrolada, cuja cabeça vem a morder a própria cauda (princípio e fim coincidem no mesmo ponto; todo o movimento que se registra entre os dois termos nada de novo acarreta!). Este circular contínuo e monótono da história era dito "o ritmo do yin e do yang", "a aspiração e a expiração de Brama", "a dança de Siva que produz e destrói sucessivamente os mundos", "a incessante alternância da Discórdia e da Amizade".¹

Em consequência, a tendência de muitos indivíduos era emancipar-se dos ciclos do mundo presente mediante a ascese, o esquecimento e o repúdio do corpo e do corpóreo, a fim de passarem a viver num mundo transcendente.

Isto explica que os antigos pouco se tenham preocupado com historiografia, ou seja, com o relato contínuo e fiel das fases sucessivas da evolução humana. Quando o faziam, visavam apenas episódios restritos ou envolviam as narrativas dentro de concepções lendárias, mitológicas, de sorte que os relatos já não transmitiam a notícia de fatos ocorridos, mas eram, em grau maior ou menor, a expressão da fantasia popular ou de uma religiosidade politeísta, exuberante (nos diversos acervos de ruínas escavados no Oriente até hoje, não se encontrou uma síntese histórica dos tempos antigos; apenas se descobriram elementos - inscrições e documentos parciais - para se reconstituir a história da Assíria, do Egito, etc.).

Ora nesse ambiente o povo de Israel se distingue por ter cultivado a história, e o Ter feito com esmero tal que só foi superado pelos gregos, mestres da historiografia ocidental. É o que reconhecem, não sem admiração, os críticos modernos racionalistas:

"Dentre todos os povos asiáticos-europeus, somente Israel e a Grécia possuem autêntica historiografia. Em Israel, que ocupa lugar privilegiado entre todos os povos civilizados do Oriente, a historiografia se originou em época tão remota que causa surpresa, e produziu logo de início obras de importância (...). Na Grécia surgiu mais tarde".¹
Com efeito, na literatura dos hebreus, que coincide com os escritos bíblicos, é delineada a história do povo em traços contínuos e de modo que pressupõe a pesquisa de fontes, a transcrição de documentos dos arquivos orientais (...). Quando é possível controlar as afirmações dos cronistas de Israel à luz de textos profanos, aqueles se comprovam fiéis à verdade, condizentes com o que referem outras fontes.² A história de Israel assim descrita se desdobra uniformemente, sob a influência de uma concepção monoteísta assaz forte para superar crises, aberrações, suscitadas entre os hebreus para idolatria dos povos vizinhos.

E como se explica que os rudes judeus, ultrapassando as categorias culturais do seu ambiente, tenham com tanto esmero cultivado a historiografia?

A razão do fenômeno está na religiosidade de Israel, inconfundível com a das outras nações do Oriente. Longe de professar que a sucessão dos tempos carece de sentido, os hebreus julgavam-na toda perpassada por um plano divino, que nela se vai atuando e tende à consumação no fim dos séculos; viam, pois, nos grandes acontecimentos da história comunicações, ora mais claras ora mais veladas, de Deus; o passado lhes aparecia qual mensagem divina a prenunciar realizações futuras ou a admoestar a melhor conduta de vida.¹ Entende-se, pois que, movidos por tal concepção, os escritores de Israel se tenham preocupado com a redação de suas crônicas, dando-lhes adequado desenvolvimento e realce.

Não seria justo, porém, afirmar-se apenas esta nota da historiografia em Israel. Outras observações se devem acrescentar à precedente, a fim de se poderem interpretar com exatidão as crônicas existentes na Sagrada Escritura. Tenham-se em vista, portanto, ainda ao seguintes itens:

a) a historiografia israelita é toda pragmática-religiosa, ou seja, procura realçar o sentido religioso dos acontecimentos; sempre que possível, o historiador deduz a lição contida nos fatos. Aliás, entre os próprios pagãos, a história era geralmente considerada qual "mestra da vida",² devendo as narrativas de feitos pretéritos servir de escola às gerações futuras. Os israelitas tiveram consciência particularmente viva deste princípio, pois, por revelação divina, sabiam que, de fato, Deus fala e age pelos acontecimentos. Em conseqüência, ninguém estranhará de pormenores que se diriam de ordem meramente profana, valiosos, sim, para o erudito, mas destituídos de importância para a salvação dos fiéis.

Muito interessante a este propósito é confrontar os livros de Samuel e dos Reis com os das Crônicas. São, em grande parte, paralelos entre si; nota-se, porém, justamente nas seções paralelas que o autor de Crônicas, posterior aos de Sm e Rs, selecionou os dados da história, omitindo uns, acrescentando outros na trama anteriormente redigida, a fim de melhor pôr em evidência o significado religioso dos episódios. Por exemplo, a história do reino cismático do Norte (Samaria), referida em Rs, é silenciada em Cr, pois não interessa à linhagem messiânica, que passa pela Casa de Davi no reino meridional; quanto a Davi, é exaltado em Cr com títulos que até então só eram atribuídos a Moisés ("homem de Deus"; cf. 2Cr 8, 14; "servo de Deus", cf. 1Cr 17, 4) o reino de Judá é dito "o reino de Javé" (cf. 2Cr 13, 8), O trono de Salomão é chamado "o trono de Javé" (cf. 1Cr 29, 23; 2Cr 9, 8). Em 2Cr 35, 21s, o cronista, ao referir uma admoestação do Faraó Necao ao rei Josias, de Judá, faz questão de notar que pelo monarca pagão era o Senhor quem exortava à prudência; o relato paralelo falta em 2Rs 23, 28-30 (onde se poderia esperar).

Algo de semelhante se verifica ao se compararem entre si as seções paralelas do primeiro e do segundo livro dos Macabeus. No segundo, as intervenções de Deus em favor dos seus fiéis são muito mais freqüentes e vivamente inculcadas: notem-se 1Mc 6, 1-16 (narrativa sóbria da morte do rei Antioco Epifanes, perseguidor do povo de Deus) e 2Mc 9, 1-28 (descrição muito mais longa e calorosa, cheia de entusiasmo religioso); 1Mc 5, 31-43 e 2Mc 10, 29. O autor de 2Mc não hesita mesmo em interromper o fio da história para tecer reflexões em torno deste ou daquele episódio (cf. 2Mc 3, 1; 4, 15-17; 5, 17-20; 6, 12-17; 9, 5; 12, 43; 13, 7; 7-10).

Em consequência do seu pragmatismo, a cronografia bíblica é por exegetas modernos chamada "história profética". Esta designação talvez pareça paradoxal, pois a história se refere ao passado, enquanto a profecia ao futuro. Note-se, porém, que a história bíblica foi escrita por homens que tudo viam à luz de Deus; ora o Altíssimo não permitiu fizessem a descrição do pretérito como se fosse algo de fechado em si; ao contrário, fez que redigissem as suas narrativas de modo a conterem alusões ao futuro, constituindo o esquema ou prenúncio de realidades maiores vindouras - o que justamente é profecia. O que interessava aos autores bíblicos não era nem simplesmente contar o passado, nem perscrutar o futuro, mas mostrar os traços de um grande desígnio divino que, imutável em si, se vai desdobrando em fases simétricas, adaptadas ao desenvolvimento moral e intelectual do gênero humano;

b) o senso de propriedade literária, de "direitos autorais", era muito exíguo no Oriente antigo; ao ensinamento por escrito ou à atividade literária se atribuía pouco valor, quando comparados com o magistério de viva voz. Em conseqüência, os historiadores semitas, os nossos hagiógrafos inclusive, se permitiam transcrever documentos alheios sem indicar as respectivas fontes; praticavam assim o que se chama "citações implícitas". É bem possível que não tivessem a intenção de garantir a veracidade das passagens assim transcritas, embora nada fizessem para se distinguir do autor de tais ditos.

Tal proceder redacional tem repercussão nos métodos de exegese: em presença de uma notícia de história aparentemente errônea na Sagrada Escritura, pode-se supor seja devida a citação implícita ou a um auto anônimo, a cujos dizeres o hagiógrafo não intencionava subscrever; em tal caso o erro não teria sido endossado pelos historiador sagrado e não afetaria a inerrância da Escritura. Contudo, para que se admita uma citação implícita em determinada passagem da Bíblia, é preciso que conste com certeza que (1) o hagiógrafo, de fato, transcreveu um documento alheio (2) sem ter a intenção de o aprovar ou de garantir a sua veracidade.¹ Dado que o cumprimento destas duas condições dificilmente se pode averiguar, torna-se raro o recurso à hipótese de citação implícita para a solução de algum problema exegético;

c) visto que o senso de propriedade literária não suscitava escrúpulos, autores posteriores se permitiam retocar, ampliar, "modernizar" obra dos antigos, sem denunciar explicitamente o seu trabalho de remodelação. Tal caso é freqüente na Torá (Lei), onde se encontram coleções de leis que, embora justapostas, supõem circunstâncias e fases diversas da história de Israel, assim como o trabalho de mão sucessivas;

d) não se dava grande importância a pormenores tais como os do acabamento literário de uma obra. Podia, pois, um autor transcrever dois ou mais relatos do mesmo fato provenientes de fontes diversas sem se preocupar com a fusão harmoniosa do mesmo numa só peça literária bem trabalhada. Ao leitor ficava a tarefa de fazer a síntese de dados às vezes aparentemente contraditórios entre si, tendo, para isto, que reconstituir o ponto de vista próprio do autor de cada um dos documentos.

É o caso, por exemplo, de Gn 1, 1-3, 24, onde se encontram duas narrativas da criação do mundo (Gn 1, 1-2, 4a e Gn 2, 4b-3, 24) redigidas independentemente uma da outra. Em Gn 6-9 têm-se dois relatos do dilúvio justapostos com seus pormenores próprios, um tanto desconexos entre si e destituídos de explicação que guie o leitor. Em 1Mc 6, 1-16; 2Mc 1, 11-17; 9, 1-29 ocorrem três versões da morte do rei Antioco IV Epifanes, as quais, à primeira vista, divergem entre si, embora possam bem ser conciliadas pelo exegeta atento;

e) muitas vezes, ao refletir ditos alheios, o historiador usava do discurso direto de preferência ao indireto. Esta tendência se explica pela dificuldade de abstrair, que caracterizava os hebreus. Em tais casos podia acontecer que o hagiógrafo não julgasse necessário reproduzir verbalmente o discurso; redigia então com suas palavras próprias o teor da oração, que ele colocava nos lábios de outrem, como se fora proferida tal qual figurava no texto¹;

f) o historiador semita também não se preocupava muito com a exata cronologia e topografia dos acontecimentos. Frequentemente indicava as localidades e contava os tempos de maneira vaga. Podia servir-se também de cronologia esquemática; assim no livro dos Juízes o período de quarenta anos (duração média de uma geração) costuma designar acontecimentos rematados, acarretando logicamente os períodos de vinte e oitenta anos (cf. Jz 3, 11.30; 4,3; 5, 32; 8, 28; 13, 1; 15, 20; 16, 31).

Às vezes os números de dias, meses ou anos não indicam, em absoluto, duração, mas, sim, qualidades dos indivíduos a quem são atribuídos; tenham-se na memória, por exemplo, as listas genealógicas dos setitas e dos semitas, em Gn 4, 17-24 e 5, 1-32.
Também o autêntico grau de cultura e civilização dos quadros e personagens bíblicos parecia negligenciável aos historiadores sagrados. Para tornar mais significativos os episódios antigos, o hagiógrafo não raro os descreve anacronicamente, projetando no passado os dados da cultura do seu tempo, mais aptos a transmitir determinada mensagem aos destinatários do livro. É o que se dá na "pré-história bíblica" (Gn 1-11).

g) em particular, os onze primeiros capítulos do Gênesis pertencem a gênero literário próprio; não seria lícito, de um lado, interpretá-los tão segura e rigidamente como as demais seções de historiografia da Bíblia, nem, por outro lado, entram na categoria de mitologia ou fábula. Referem, sem dúvida, acontecimentos ocorridos no pretérito, transmitidos, porém, mediante vocabulário e estilo muito dependentes de textos profanos; aludem provavelmente a certos tópicos das cosmogonias e da história das origens de outros povos.

Eis os principais traços da historiografia bíblica. Quem os conhece, não concebe problemas que, à primeira vista, o texto sagrado suscita.

¹ Testemunhos ou vestígios desta concepção oriental encontram-se em: Empédocles, Fragm. 30 e 115; Aristóteles, Meteor. 1. 1, c. 3; Da geração e da corrupção 1.2, cap. 11; Sêneca, Quaestiones naturales 1. 3, caps. 28s; Censorino, De die natali 18: Stobeu, Eclogae physicae 1. 1, c.8; Cícero, Sonho de Cipião 7; Sérvio, Comentário da Quarta Ecloga de Virgilio, v. 4.

¹ E. Meyer, Geschichte des Altertums 14 1. 1921, 227.

Pio XII chamava a atenção para tal fenômeno em sua Encíclica Divino afflante Spiritu:

"As pesquisas comprovaram claramente que o povo israelita, entre as demais nações antigas do Oriente, se distinguia singularmente na arte de escrever a história, e isto tanto pela fidelidade como pela antigüidade das narrativas" (Ibid., 315).

² Dentre as várias obras que nos últimos tempos têm proposto o confronto e a concórdia entre os dados da Bíblia e documentos de arqueologia, paleontologia, assiriologia, egiptologia, etc. particularmente interessante é a de W. Keller, Und die Bibel hat doch Recht! (Duesseldor, 1954).

¹ Muito claramente se afirma esta concepção nos escritos dos Profetas. Estes, querendo predizer a futura Redenção messiânica e a instauração visível do reino de Deus, descreviam-nas com os traços característicos de duas "redenções" anteriores de Israel, ou seja, evocando os acontecimentos do êxodo do Egito e os do egresso após o cativeiro babilônico (cf. Is 35, 1-10; 40, 1-5; 44, 26-45, 4; Jr 31, 15-17.31-36; Os 2, 16-19; 11, 8s).

² Cícero tem a história na conta de "lux veritatis..., magistra vitae - luz da verdade..., mestra da vida" (De Oratore 2, 9).

¹ Cf. o decreto da Pontifícia Comissão Bíblica de 13 de fevereiro de 1905 (Denzinger, Enchiridion Symbolorum, 1909).

¹ Os comentadores apontam como exemplos - naturalmente sujeitos a dúvidas - os textos de Gn 49, 2-27 (bênção de Jacó moribundo sobre os seus filhos), Dt 33, 2-29 (bênção de Moisés sobre as tribos de Israel). Cf. Lagrange, em Revue biblique, 1898, 539; J. Chaine, Genèse, 489; A. Clamer, "Genèse", em La Sainte Bible de Pirot-Clamer I. (Paris 1953), 494; "Deutéronome", ibid., II, 740.





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