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domingo, 30 de janeiro de 2011

Canibalismo na tradição bíblica? - EB

Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 356 - Ano 1992 - p. 30

Em síntese: Uma reportagem da imprensa contemporânea tencionou demonstrar que "a idéia de canibalismo percorre as tradições judaica e cristã (Folha de São Paulo, 13/08/91). Para fundamentar sua afirmativa, o repórter cita (imprecisamente) textos do Antigo Testamento e do Novo Testamento (Eucaristia!). Ora tal recurso é improcedente em caso nenhum as Sagradas Escrituras oferecem justificativa para a antropofagia: os exemplos citados do Antigo Testamento não são apresentados pela Bíblia como paradigmas, mas como expressões de desespero e desatino da parte de homens e mulheres de Israel. Quanto aos textos do Evangelho relativos à Eucaristia, nada têm que ver com canibalismo, pois incutem a comunhão com a carne e o sangue de Cristo glorificado, ou seja, subtraído às condições terrestres ou a condições de carne de matadouro.

A imprensa, em agosto de 1991, transmitiu a notícia de que Jeffrey Dahmer, "canibal" norte-americano, estava sendo julgado por um tribunal em Milwaukee. Ao comentar o fato, a reportagem, da autoria de Janer Cristaldo, na Folha de São Paulo afirmava que "na verdade Jeffrey Dahmer nada fez senão praticar um gesto que está nos fundamentos da cultura cristã. Mas ainda: é praticado diariamente em todos os países do Ocidente" (Folha de São Paulo, 13/08/1991).

Para fundamentar esta afirmação, vêm citados exemplos do Antigo Testamento, como se encontram em 2Rs 6,28s; Lm 2,20; Ez 5,10; Jr 19,9 e nos relatos do Evangelho que apresentam a S. Eucaristia como sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor Jesus (cf. Mt 26, 26-28 e paralelos). - A notícia jornalística impressiona não pelo acume de perspectiva do repórter, mas pela capacidade de deformar fatos e textos do passado a fim de causar sensacionalismo no público ledor. Examinemos de perto a questão.

Os textos do Antigo Testamento

1. Eis as passagens do Antigo Testamento mencionadas por Janer Cristaldo:

Deuteronômio 28,53: "Na angústia do assédio com que o teu inimigo te apertar, irás comer o fruto do teu ventre: a carne dos filhos e filhas que o Senhor teu Deus te houver dado".

2 Reis 6, 28s: "O rei perguntou a uma mulher da Samaria: "Que te aconteceu?" E ela: "Esta mulher me disse: Entrega teu filho, para que o comamos hoje, e amanhã comeremos o meu. Cozinhamos, pois, o meu filho e o comemos; no dia seguinte, eu lhe disse: Entrega teu filho para o comermos, mas ela ocultou seu filho".

Lamentações 2, 20: "Vê, Senhor, e considera: a quem trataste assim? Irão as mulheres comer o seu fruto, os filhinhos que amimam? Acaso se matará no santuário do Senhor sacerdote e profeta?"

Ezequiel 5, 10: "Os pais devorarão os filhos no meio de ti, e os filhos devorarão os pais (ó Jerusalém!)".

Jeremias 19,9: "Eu farei que eles devorem a carne de seus filhos e a carne de suas filhas; eles se devorarão mutuamente na angustia e na necessidade com que os oprimem os seus inimigos e aqueles que atentam contra a sua vida".

2. Observemos que os textos de Dt 28, 53; 2Rs 6, 28s; Lm 2,20; Ez 5,10 se referem a dias calamitosos, em que os adversários cercaram ou cercariam uma cidade da Terra de Israel, provocando a fome dos seus habitantes. Em consequência, as mulheres e os homens comeriam (ou ameaçariam comer) seus filhos. Não se trata, pois, de um hábito vigente no povo bíblico do Antigo Testamento, mas de casos excepcionais, devidos ao desespero de populações sitiadas e famintas. Nem são exceções aprovadas ou ratificadas pelo auto sagrado que as refere; são, antes, atitudes que contradizem à Lei de Moisés, onde se lê? "Não matarás" (Ex 20, 13) - atitudes, portanto, que não podem ser tomadas como paradigmas ou como justificativas de canibalismo moderno.

3. Quanto ao texto de Jeremias, refere-se às mesmas circunstâncias; apenas chama a atenção a locução "Farei que eles devorem a carne de seus filhos...". - Esta expressão não significa que Deus havia de preceituar a antropofagia - o que seria contraditório à Lei do próprio Deus: "Não matar". Significa, antes, que a calamidade desencadeada sobre Judá pelos pecados do próprio povo será tal que os pais hão de querer comer a carne dos filhos. O semita não distingue entre causa primeira e causa segunda, mas atribui toda causalidade a Deus. Na verdade, Deus não é, nem pode ser, causa de crimes e pecados; é o homem que os causa e comete, quando se torna vítima de seus próprios desatinos.

4. Fora do povo de Israel era, sim, praticado o canibalismo ou a antropofagia. Tal costume, porém, supunha premissas alheias às dos judeus. Com efeito; vários povos primitivos julgavam que a absorção do sangue ou o consumo do cérebro de uma pessoa falecida comunicaria ao usuário as virtudes (inteligência, habilidades, força...) desse indivíduo. Por isto matavam seres humanos e bebiam seu sangue ainda fresco, pois no sangue estaria a alma ou a fonte das virtualidades da vítima; o sangue era, por vezes, tido como o alimento mais precioso do ser humano. Em outros casos matavam um ser humano, perfuravam-lhe o crânio e retiravam-lhe ou absorviam-lhe o cérebro, julgando que assim participariam dos predicados do defunto. Ora tal costume era abominável aos olhos de Israel e de sua Lei; não se encontram no Antigo Testamento testemunhos que possam fundamentar o canibalismo em nossos dias.

O Novo Testamento

Segundo Janer Cristaldo, no Novo Testamento "o canibalismo é virtude":

"Durante a Santa Ceia, Cristo oferece seu corpo e seu sangue em uma refeição sacrificial, para que os participantes entrem em contato com o sacrifício, comendo do sacrificado. É o que os católicos romanos chamam de transubstanciação. Todo católico, quando comungo, não está bebendo o vinho ou comendo o pão como símbolos do corpo de Cristo. Está, de fato, bebendo o sangue e comendo a carne de Cristo" (reportagem citada).

Na verdade, a fé católica professa a real presença de Cristo (com corpo, sangue, alma e Divindade) no sacramento da Eucaristia. Sob os acidentes do pão e do vinho está o Cristo inteiro, para o alimento da vida espiritual dos cristãos. Esta verdade é expressa nitidamente nos textos do Evangelho:

"Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo-o abençoado, partiu-o e, distribuindo-o aos discípulos, disse: "Tomai e comei, isto é o meu corpo". Depois tomou um cálice e, dando graças, entregou-o dizendo: "Bebei dele todos, pois isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado por muitos para a remissão dos pecados" (Mt 26, 26 e paralelos).

João 6,51: "O pão que eu darei, é a minha carne para a vida do mundo... Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia".

É de notar, porém, algo de muito importante: quando Jesus anunciou aos judeus a entrega do seu Corpo e do seu Sangue como alimento sacramental, os judeus que ouviam, entenderam tal promessa em sentido canibalístico ou antropofágico e se horrorizaram. Respondeu-lhes Jesus:

"Isto vos escandaliza? E quando virdes o Filho do Homem subir aonde estava antes? (...). O espírito é que vivifica, a carne para nada serve. As palavras que vos disse, são espírito e vida" (Jo 6, 61-63).

Tal resposta quer dizer.

Jesus visava a remover um entendimento grosseiro de suas afirmações, o entendimento canibalístico também chamado "cafarnaítico" (porque característico dos ouvintes de Cafarnaum, onde Jesus falava): não se tratava de comer carne enquanto tal (está claro que esta por si não significa o homem) nem de comer a carne do Senhor em suas condições terrestres (como se come a carne do açougue), mas, sim, de receber a carne de Cristo glorificada e elevada aos céus, emancipada das leis do espaço e do tempo. É a carne nessas circunstâncias novas que Jesus chama "espírito"; é espírito, porque está toda penetrada pela Divindade (na verdade, é a Divindade de Cristo que, mediante a carne, vivifica os fiéis na Eucaristia).

A Eucaristia, como alimento sacramental, faz o cristão viver como membro do Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja. Os conceitos de Encarnação e Corpo de Cristo são fundamentais no Cristianismo: o cristão é feito membro do Corpo Místico pelo Batismo e, como tal, é alimentado pelo Corpo Eucarístico de Cristo. Todavia em caso nenhum se trata de carne em condições terrestres, como é a carne do matadouro, mas trata-se de comungar com a carne de Cristo glorificada ou existente em condições muito diversas daquelas que o canibalismo supõe. Por conseguinte, é falso apelar para os textos do Novo Testamento no intuito de basear crimes modernos de antropofagia.

É, não, raro peculiar aos repórteres procurar causar impacto no público, apoiando-se em sofismas ou afirmações superficiais e infundadas; "jogam areia nos olhos do leitor". Especialmente grave é tal prática quando ela versa irreverentemente sobre valores religiosos, que são caros ao público ledor. O fiel católico há de saber discernir os sofismas ou trocadilhos que lhe são apresentados.





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