Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
D. Estevão Bettencourt, Osb
Nº 523, Ano 2006, p. 7
Em síntese: A "Bíblia na Linguagem de Hoje" é uma tentativa de traduzir em linguagem popular o texto sagrado para torná-lo acessível ao grande público. A intenção dos tradutores é louvável, mas a obra é infeliz, pois, mais do que uma tradução, fizeram uma interpretação, por vezes nitidamente protestante. Alem do quê, a adaptação do texto sagrado ao vocabulário popular faz que o novo texto deixa de apresentar termos bíblicos ricos de conotações e temas teológicos como "Tradição, depósito, mistério..."; assim se empalidece a mensagem bíblica em vez de ser levada ao povo simples. A solução para o problema da difusão da Bíblia está, antes, em conservar o vocabulário típico e rico do texto sagrado, munindo-o, porém, de notas explicativas em rodapé, a fim de que o leitor não iniciado cresça em cultura bíblica, em vez de ser deixado na sua exígua cultura, com empobrecimento da mensagem sagrada.
A Sociedade Bíblica do Brasil, de orientação protestante, editou em 1988 os livros protocanônicos da Bíblia "na linguagem de hoje" ¹. Até aquela data só existia o Novo Testamento em tal estilo. O trabalho conta com a colaboração das Sociedades Bíblicas Unidas e tem seus paralelos em outras línguas modernas. Ainda as Sociedades Bíblicas Unidas traduziram os escritos deuterocanônicos (Tobias, Judite, Sabedoria, Baruque, Eclesiástico, ½ Macabeus, Ester 10, 4-16, 24; Daniel 3, 24-90, 13-14), que o catálogo católico considera Palavra de Deus ou partes integrantes da S. Escritura.
Ora eis que as Edições Paulinas (católicas) obtiveram a autorização para publicar num só volume os textos canônicos e deuterocanônicos da Bíblia, que atualmente está sendo apresentado ao público como "Nova Tradução na Linguagem de Hoje" (BLH); acompanhada de uma carta assinada pelo sr. Bispo D. Eugenio Rixen, Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-catequética, ... carta que não quer dizer que tal é a melhor tradução da Bíblia, mas apenas significa que é aceitável.
O texto em pauta tem notas de rodapé que indicam textos paralelos, mas não explanam a mensagem bíblica; esta fica ao critério do livre exame feito pelo leitor. Também as secções de introdução em cada livro são muito sóbrias. Impõe-se assim a pergunta: quanto vale para o grande público tal edição? - É o que vamos levar em conta.
AVALIAÇÃO
Traduzir é sempre correr o risco de perder algo da força e do colorido do texto original. Isto não quer dizer que não se deva traduzir, mas, sim, que se há de traduzir levando em conta tal risco e procurando minorá-lo tanto quanto possível. Esse risco tem conseqüências especialmente sérias quando se quer verter a Bíblia fugindo intencionalmente da sua nomenclatura original e típica, a título de que é arcaica ou ininteligível ao homem de hoje; conseqüentemente utiliza-se um vocabulário tido como mais moderno e compreensível, mas certamente distante do teor e da pujança dos termos originais. Aos poucos, e insensivelmente, vai-se escrevendo um livro diferente ou uma obra de leitura fácil e agradável, mas incapaz de transmitir toda a riqueza da mensagem nativa.
O problema de tornar a Bíblia acessível à compreensão do grande público não se resolve pela adaptação do vocabulário típico (e, indiretamente, de teor característico) da Bíblia ao linguajar (e, conseqüentemente, ao pensar) do povo simples, mas soluciona-se, antes, pela elevação do nível de compreensão dos leitores ao nível de expressão e pensamento do texto sagrado. O grande público só poderá lucrar se se lhe acrescentar algo em matéria de cultura bíblica, em vez de ser deixado na sua exígua cultura religiosa. Praticamente isto significa que uma boa tradução da Bíblia não se deve furtar ao emprego de termos típicos como "justificação, carne e sangue...", mas, respeitando-os, o tradutor deverá explicar o seu sentido em notas de rodapé; assim o texto guardará as suas feições características semitas ou helenistas e, não obstante, se tornará inteligível.
Em particular, uma das razões pelas quais é indispensável guardar o vocabulário típico da Bíblia, é a seguinte: muitos termos bíblicos têm sua história, suas conotações, suas assonâncias na cultura antiga (hebraica, aramaica ou grega); conseqüentemente, se se trocam tais termos por outros, pode-se perder a noção da riqueza e das implicações semânticas de tais vocábulos.
Passemos agora a exemplos que ilustrarão quanto dissemos e que têm sua ocorrência na "Bíblia na Linguagem de Hoje".
1. Tradição
Tradição tem seu equivalente literal ou semântico no grego parádosis, que significa "dar ou passar adiante". O vocábulo no Novo Testamento supõe a transmissão de uma doutrina de geração em geração dentro de um clima de respeito e veneração que os antigos dedicavam à Palavra de Deus ou ao deposito (parathéke) sagrado (ver subtítulo seguinte).
Ora a BLH troca tradições por outros termos:
2Ts 2, 15: "Fiquem firmes e guardem aquelas verdades que ensinamos a vocês nas nossas mensagens e na nossa carta". Literalmente dever-se-ia dizer em absoluta fidelidade ao texto e sem prejuízo para a clareza: "Permanecei firmes e guardai as tradições (paradóseis, em grego) que recebestes, seja de viva voz, seja por carta nossa".
Segundo a versão da BLH, perde-se a consciência de que as "verdades ensinadas por S. Paulo" são verdades provenientes de fonte mais remota. Além do quê, a palavra mensagens é mais genérica do que "ensinamentos de viva voz"; dir-se-ia que os tradutores quiseram evitar a recomendação que São Paulo faz da tradição oral rejeitada pelos protestantes.
1Cor 11, 2: "Eu os elogio porque... vocês seguem as instruções que eu passei para vocês". Literalmente dever-se-ia ler, sem detrimento para a clareza do texto: "Eu vos louvo por guardardes as tradições (paradóseis) tais como eu vo-las entreguei".
Como dito, a intenção de evitar a palavra "tradição, tradições" quando o Apóstolo a recomenda, deve-se ao fato de que os protestantes rejeitam a tradição divino-apostólica ou as doutrinas que nos foram transmitidas por via meramente oral.
2. Depósito
Esta palavra corresponde ao grego parathéke, que significava um bem a ser guardado com zelo e honradez; não se tolerava qualquer infidelidade ou violação da confiança da parte do depositário. Ora, quando São Paulo se refere à doutrina cristã como parathéke, ele quer incutir essa inviolabilidade devida ao ensinamento de Jesus transmitido pelos Apóstolos. Tal conotação, porém, é enfraquecida, caso se substitua parathéke, como faz a BLH:
2Tm 1,14: "Guarde as boas coisas que foram entregues a você" em vez de: "Guarda o bom depósito (parathéken)".
1Tm 6, 20: "Timóteo, guarde bem o que foi entregue aos seus cuidados" em vez de: "Timóteo, guarda o depósito (parathéken)".
2Tm 1, 12: "Estou certo de que ele (o Senhor) é poderoso para guardar até aquele dia aquilo que me confiou", em vez de: "Estou certo de que Ele tem poder para guardar o meu depósito (parathéken) até aquele dia".
3. Justo, justificar, justificação
"Justo", na linguagem bíblica, é o homem reto, identificado com o plano de Deus. "Justificar" significa "fazer reto ou amigo de Deus". O verbo se prende também ao substantivo "justiça" (dikaiosýne, em grego; sedéq, sedaqáh, em hebraico), que é amplo e rico em significado tanto no Antigo como no Novo Testamento. ¹ É, pois, insubstituível , dados os matizes que tal palavra apresenta o que devem ser levados em conta por quem deseje entender bem a Bíblia. Ora a BLH omite os vocábulos "justificar" e "justiça", como se vê nos textos abaixo:
Rm 3, 20-22: "Ninguém é aceito por Deus por fazer o que a Lei manda... Deus já mostrou que o meio pelo qual ele aceita as pessoas não tem nada a ver com a Lei... Deus aceita as pessoas por meio da fé" em lugar de: "Diante dele ninguém será justificado pelas obras da Lei... Agora, porém, se manifestou a justiça de Deus,... justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo". Ver Rm 3, 28.30; 4, 2.3.5...
De Modo especial, a BLH modifica o sentido do texto original em Rm 1,17b; Gl 3, 11b; Hb 10, 38, em que se encontra a citação de Hab 2, 4: "O justo viverá pela fé (ho dikaios ek písteoos zésetai)". Tal versículo em que díkaios é substantivo, vem assim traduzido pela BLH:
Rm 1, 17b: "Viverá aquele que, por meio da fé, é aceito por Deus".
Gl 3, 11b: "Viverá aquele que, por meio da fé, é aceito por Deus".
Hb 10, 38: "Todos aqueles que eu aceito, terão fé em mim e viverão".
A primeira forma de traduzir distorce o texto, pois faz do substantivo díkaios (justo) uma forma verbal passiva: é aceito (o que seria dikaioutai no presente ou dedikaioutai no perfeito, em grego). Transformando o substantivo em verbo, o tradutor ligou-o com o complemento pela fé, de modo a exprimir a doutrina luterana (protestante) da justificação pela fé apenas (sola fides), somente a fé).²
Quanto a tradução de Hb 10, 38, difere da de Rm 1, 17b e Gl 3, 11b, embora o texto grego citado seja o mesmo; é menos protestante do que a tradução de Rm 1, 17b e Gl 3, 11b, mas vem a ser uma interpretação mais do que uma simples tradução.
¹ A propósito ver, por exemplo, A. van den Born, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, verbete "Justificação".
² É de notar que a Tradução Ecumênica da Bíblia, realizada por católicos, protestantes e ortodoxos, conserva o sentido clássico: "Aquele que é justo, viverá pela fé" (Rm 1, 17b; Gl 3, 11b; Hb 10, 38). Aliás, esta tradução é exigida pelo contexto mesmo de Hab 2, 3s, onde se faz a antítese entre "aquele que é justo" e "aquele cuja alma não é reta". - Ver Novo Testamento em Tradução Ecumênica da Bíblia. Ed. Loyola.
Notamos outrossim que a edição inglesa de BLH (Good News Bibe) assim traduz Rm 1,17: "The person put right with God shall live through faith" (viverá pela fé).
4. Primeiro filho
Em Lc 2, 7 lê-se que Maria deu à luz o seu protótokon. À primeira vista, este vocábulo se traduz por primogênito; leve-se em conta, porém, que primogênito, no linguajar semita e bíblico, equivale muitas vezes a "unigênito" e "bem-amado", pois o primogênito é, durante algum tempo, o único filho e aquele que concentra todo o amor de seus pais. Tenham-se em vista, por exemplo, os dizeres de Zc 12, 11:
"Quanto àquele que transpassaram, chorá-lo-ão como se chora um filho unigênito; chorá-lo-ão amargamente como se chora m primogênito".
Mesmo fora da terra de Israel, podia-se chamar primogênito o filho que não tivesse irmão nem irmã mais jovem é o que atesta uma inscrição sepulcral judaica datada de 5 a.C. e descoberta em Tell el-Jedouhieh (Egito) no ano de 1922; lê-se aí que uma jovem mulher chamada Arsinoé morreu "nas dores do parto do seu filho primogênito".
Ora a BLH, traduzindo protótokon por primeiro filho, já tira ao leitor brasileiro a possibilidade de perceber a densidade e as peculiaridades de significado do linguajar semita. Com efeito; "primeiro filho", em português, insinua "segundo, terceiro... filhos", como os protestantes querem que tenha havido no caso de Maria e José (ao contrário do que ensina a Tradição cristã até hoje). No vocábulo hebraico suposto pelos evangelistas, o primogênito é aquele antes do qual não houve outro (é por isto o bem-amado), mas não é necessariamente aquele após o qual houve outros.
5. Mistério
Mystérion é outro termo denso no vocabulário bíblico. Era utilizado pelos gregos sob forma de plural para designar os ritos pagãos; e aparece com este significado no texto grego de Sb 14, 15.23; 12, 5. Em Daniel 2, 7.28s, significa os acontecimentos finais da história, cuja notícia é revelada por Deus. Nos apócrifos judaicos, mystérion significa um desígnio de Deus, decretado desde todo o sempre e destinado a se revelar no fim dos tempos para instaurar a ordem violada no mundo pelos iníquos; ver Henoque 49, 2; Henoque etíope 51, 3.
Nos escritos paulinos mystérion é palavra de significado bem definido:
- é o plano da salvação concebido por Deus Pai desde toda a eternidade (1Cor 2, 7) ...
- ocultado a todas as criaturas, até mesmo aos anjos (1Cor 2, 8;Ef 3, 9; Cl 1, 26; Rm 16, 25s)...
- revelado aos homens mediante a pregação dos Apóstolos e a história da Igreja (Ef 3, 3-5. 10s; 1Cor 2, 1.7) ...
- identificado com o próprio Cristo (Cl 1, 27; 2, 2; 4, 3). A morte e a ressurreição de Cristo são o conteúdo mais íntimo do mistério de Deus.
- A progressiva revelação do mistério inaugura os últimos tempos ou marca a plenitude dos tempos (Ef 1, 9).
Ora um vocábulo tão rico de acepções e alusões não pode ser omitido numa tradução da Bíblia, como faz quase por completo a BLH. Nem se vê por que sonegar tal termo, que na própria linguagem popular é usual com efeito, o povo fala freqüentemente de mistério(s). Chama-nos a atenção especialmente a troca de mistério por segredo em Mt 13, 11 ("os segredos do Reino do céu"); Cl 1, 26 ("essa mensagem é o segredo que ele escondeu"); Cl 2, 2 ("o segredo de Deus, que é o próprio Cristo"); Ap 10, 7 ("Deus cumprirá o seu plano secreto...); 1Cor 4, 1 ("nós, que somos encarregados de realizar os planos secretos de Deus")...
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