2. Surge então a pergunta: qual seria o simbolismo incutido por tais números?
Para facilitar o entendimento das interpretações a ser dadas, vão aqui propostas as cifras de ambas as listas:
ADAMITAS (SETITAS): Gên 5,1-32
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Adão Sete Enos Cainã Malaleel Jarede Henoque Matusalém Lameque Noé
Idade em que
gerou o 1º filho: 130 104 90 70 65 162 65 187 182 500
Restante tempo
de vida:.......... 800 807 815 840 830 800 300 782 595 450
Total:............. 930 912 905 910 895 962 365 969 777 950
SEMITAS: Gên 11,10-26
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Sem Arfaxade Cainã(1) Sale Heber Falegue Reu Sarugue Nacor Terá
Idade em que gerou o 1º filho: 100 35 130 30 34 30 32 30 29 70
Restante tempo de vida.............. 500 403 330 403 430 209 207 200 119 135
Na interpretação dos números, muitos pormenores escapam simplesmente ao entendimento do exegeta moderno, visto não estarmos familiarizados com a antiga mística das cifras. Em todo caso podem-se estabelecer as seguintes proposições:
1) Sendo dez o símbolo da totalidade (pois esgotas a série das unidades), o número de dez gerações em ambas as tabelas significa totalidade, isto é, todas as n gerações que houve entre a criação (Adão) e o dilúvio (Noé, novo pai do gênero humano após "nova criação"),... entre o dilúvio e Abraão (novo início da história religiosa, desta vez limitada ao povo de Abraão). Quantas foram essas gerações, o autor mesmo não o sabia nem Deus lho quis revelar especialmente, pois isto não era necessário para se atingir a finalidade religiosa do texto bíblico. Em conseqüência, o hagiógrafo recorreu aos nomes de dez personagens reais para significar simplesmente uma etapa consumada na história sagrada, etapa cujos pormenores não interessavam ao escritor sagrado.
2) Passando agora à interpretação dos números que acompanham cada um dos nomes das duas listas, dever-se-á observar o seguinte:
De maneira geral, o número indica ordem, harmonia ou conformidade com o plano de Deus (cf. Sab 11,20: o Senhor tudo dispõe "conforme medida, número e peso"). Por isto é que na lista dos Cainitas (Gên 4,17-24), reputados como pecadores, não é mencionado número algum; tais homens estão fora da harmonia e fora do livro da vida.
Elevado número de anos de vida, dentro dessa perspectiva, significa não a duração da vida ou a longevidade do respectivo Patriarca, mas a sua venerabilidade. Uma longa vida sobre a terra sendo o objeto das aspirações de todo homem, os israelitas ligavam consequentemente os conceitos de benção divina e venerabilidade com o ideal da longevidade.
"Aquilo que um pintor, ao representar um Patriarca, exprime mediante uma estatura elevada e pujante, uma barba ondulada, uma cabeleira branca como a neve, o mesmo o hagiógrafo o exprimiu mediante as elevadas cifras. Era preciso, sim, que se servisse de altos números caso quisesse dar aos seus contemporâneos uma impressão autêntica do que eram aqueles antepassados veneráveis; os Babilônios, do seu lado, atribuíam a cada um dos dez reis ante-diluvianos períodos de governo que vacilavam entre 18.000 e 72.000 anos!" (J. Schildenberger, Vom Geheimnis des Gotteswortes. Heidelberg 1950, 275).
Note-se, porém, que o texto da Escritura faz diminuir aos poucos a "longevidade" dos Patriarcas: ao passo que a dos Setitas varia entre 1000 e 750 anos, a dos Semitas já oscila entre 600 e 150 anos, a dos filhos de Abraão se reduz a uma média entre 200 e 100 anos (cf. Gên 25,7; 50,26; Dt 34,7), para cair no normal de 70/80 anos em textos posteriores (cf. Sl 89,10). Esse decréscimo significa que quanto mais o curso das gerações se distanciava do estado paradisíaco, tanto mais se alastrava a iniqüidade sobre a terra e, por conseguinte, cada vez mais forte sobre o homem era o poder das misérias acarretadas pelo pecado (entre as quais, a morte).
3) Não se poderia, hoje em dia, indicar a razão de ser de todo e qualquer dos números atribuídos a cada um dos Patriarcas em particular. Algumas cifras, porém, tem sentido claro:
Henoque, por exemplo, viveu 365 anos e, a seguir, sem passar pela morte, foi arrebatado por Deus (Gên 5,21-24). Embora a sua vida seja a mais breve da respectiva lista, o número que a acompanha diz que foi vida consumada; sendo 365 o número característico do ano solar, Henoque, que caminhou 365 anos com Deus, é apresentado como um sol que consumou sua trajetória sobre a terra, difundindo luz e calor; no número (elevado ou exíguo..., isso não importava muito ao autor sagrado) de anos que passou sobre a terra, cumpriu sua missão. Por isto também é o sétimo Patriarca da lista setita (pormenor que por sua vez significa perfeição e que é explicitamente realçado por S. Judas Tadeu na sua epístola, v. 14).
Lameque representa, depois de Henoque, a vida menos longa da linhagem setita: 777 anos. Mas também esta vida, pelo número 7 que a caracteriza, é insinuada perfeita ou consumada. Ademais, ao gerar Noé (5,28s), Lameque professa esperar deste filho alívio ou repouso, isto é, uma espécie de sábado (sétimo dia!): "Este (Noé) nos consolará de nossos trabalhos e da fadiga de nossas mãos, causados pelo solo que o Senhor amaldiçoou" (5,29).
Noé, cujo nome significa "repouso", também tem a sua vida marcada pelo número 7 (cifra do dia de repouso); conforme Gên 8,13s, o dilúvio terminou, cedendo à bonança no ano 601, ou seja, no início do sétimo século da vida de Noé. Após o dilúvio, este Patriarca ainda viveu 350 anos (cf. Gên 9,28), isto é, sete períodos jubilares (= 7[7x7+1]). Sua vida, pois, após a catástrofe, foi realmente uma espécie de sábado ou era de repouso para o mundo, conforme a profecia de sua pai Lameque.
Abraão foi chamado por Deus para deixar sua terra, aos 75 anos de idade (cf. Gên 12,4); gerou Isaque aos 100 anos (cf. 21,5) e morreu aos 175 anos (cf. 25,7). Já à primeira vista, não se pode negar certo ritmo ou artifício nestes números, artifício que talvez seja o seguinte: o hagiógrafo, dividindo a vida de Abraão em sete períodos de 25 anos, atribuiu três à permanência na Mesopotânia e quatro (100 anos) à estada na Terra Prometida. Ora 100 anos, conforme a mentalidade que domina a história de Abraão (cf. Gên 15,13 e 16), representam a duração de uma geração; com esta cifra, portanto, o autor sagrado queria dizer que Abraão levou vida suficientemente longa (a vida de uma geração!) na Terra Prometida a fim de santificá-la, coisa que não fizera no seu torrão natal, donde Deus o tirara após 3 x 25 anos.
De resto, certos episódios da vida de Abraão desmentem a interpretação cronológica dos números atribuídos a este varão e exigem para o Patriarca e sua esposa idade muito mais jovem do que insinuam as cifras.
Assim, quando lhes foi anunciado que gerariam um filho, Abraão e Sara, que contavam respectivamente 100 e 90 anos de idade, não o creram, por se julgarem demasiado idosos; cf. Gên 17,,17; 18,12. Sabe-se, porém, que Abraão chegou à idade de 175 anos; o que quer dizer que, aos 100 anos tinha atingido apenas 4/7 da sua existência na terra; dado que, num casal moderno, os cônjuges cheguem a viver 90 anos, o marido teria correspondentemente 55 e a esposa 45 anos, idades em que a velhice ainda não torna o sujeito incapaz de gerar; ademais Sara, depois do parto, ainda viveu 37 anos - É de notar também o seguinte; quando Abraão desceu ao Egito, conforme Gên 12,10-20, receou que sua esposa, por ser bela e atraente, lhe fosse raptada, o que, de fato, se deu; ora Abraão devia ter entre 76 e 80 anos (pois saíra de sua terra pouco antes), e Sara, cujo aspecto era fresco e agradável, devia contar entre 66 e 70 anos; o episódio, porém, por si mesmo já diz que as cifras não quadram com a realidade: de um lado, Sara aos 66/70 anos ainda podia excitar a cobiça dos maus; de outro lado, aos 90 já era estéril e incapaz de gerar! Eis indícios de que, em particular na vida de Abraão, as cifras não pertencem ao gênero histórico.
Estendendo-nos ainda até Moisés, verificamos que chegou à idade de 120 (= 3X40) anos de idade (cf. Dt 34,7). Quando enviado em missão a Faraó, tinha 80 (=2X40) anos (cf. Êx 7,7). Ora uma tradição rabínica, referida por S. Estêvão em At 7,23.30, acrescentava que Moisés tinha 40 (=1X400) anos, quando foi visitar seu povo e fugiu do Egito. Esta tradição oral parece ser o melhor intérprete das indicações do Êxodo e do Deuteronômio; os judeus terão enquadrado a vida do maior profeta de Israel (cf. Dt 34, 10-12) dentro do esquema de três períodos de 40 anos, para significar que tal vida foi bem ritmada e dirigida por Deus (pois 3 e 40 são os números sagrados e perfeitos, na S. Escritura).
Eis a interpretação de algumas cifras mais evidentes das listas dos Patriarcas bíblicos. Se os exegetas não estão habilitados a indicar o sentido de todos os demais números aí ocorrentes, julga-se com razão que deverão ser interpretados segundo a mesma tendência simbolista. Por conseguinte, vão seria querer atribuir a tais cifras valor cronológico e, por via de adições, concluir algo sobre a idade do gênero humano, a época do dilúvio bíblico, etc.
Alguns exegetas, movidos pela intenção de fazer concordar a pretensa cronologia de Gên 1-11 com a cronologia profana, apelam para hipóteses insustentáveis: teriam sido omitidas algumas gerações nas listas genealógicas de Gên 5 e Gên 11 ... (na verdade, teriam sido omitidas tantas gerações que as ditas tabelas, em última análise, de nada valeriam como documentos de cronologia).
Tratar-se-ia de anos lunares, e não de anos solares, nas cifras que parecem indicar longevidade... Dez anos das listas corresponderiam a um ano dos nossos (opinião de S. Agostinho)...
Essas hipóteses, além de não conseguirem a almejada conciliação de cronologias, estão radicalmente viciadas. Partem de um pressuposto falso, admitindo que o autor sagrado tinha a mesma intenção que o paleontólogo, ou seja, a intenção de estabelecer uma cronologia do mundo!
Não resta dúvida de que o autor bíblico nunca teve em vista ensinar tal assunto; nem o Espírito Santo o teria inspirado em vista de tal fim. Não se queira, portanto, forçar os dizeres do texto neste sentido.
Verdade é que na Idade Média se deduza a idade do mundo a partir dos dados bíblicos, de sorte que ainda hoje o Martirológio Romano pressupõe tal computação; fazia-se isso, por falta de conhecimento do emprego artificioso das cifras entre os antigos. Lembremo-nos, porém, de que a Igreja jamais definiu tal cronologia, a qual não pertence ao depósito da fé ou da moral cristã.
(¹) O nome de Cainã não figura no texto hebraico massorético, mas encontra-se no dos LXX, assim como em Lc 3,36 (cf. Jubileus 8,8). Caso tal nome não seja considerado autêntico, a lista dos semitas chega a compreender, não obstante, dez membros pela inclusão de Abraão, que a consuma e coroa.
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