"No início do ano de 1947, um jovem pastor beduíno, chamado Mohammed ed-Dib, procurava afanosamente uma ovelha desgarrada ao longo da falésia que margeia o Mar Morto, a cerca de dez quilômetros da bíblica cidade de Jericó. Vasculhando as reentrâncias da rocha, entrou numa caverna onde descobriu vasos de argila contendo rolos de pele manuscritos, envolvidos em tecido de linho. Escolheu e retirou os sete que lhe pareciam em melhor estado.
Alguns meses depois, os beduínos venderam três desses rolos a um arqueólogo da Universidade Hebraica de Jerusalém e os restantes ao Metropolita do convento sírio-jacobita São Marcos, também da Cidade Santa.
Pouco tardou para os estudiosos perceberem que Mohammed havia feito a mais retumbante descoberta arqueológica do século XX: os famosos Manuscritos do Mar Morto. Aos poucos, pesquisadores começaram a explorar meticulosamente a região, enquanto os beduínos, por seu lado, faziam o mesmo. Assim, de 1949 a 1956, foram descobertas mais dez grutas, nas quais foram coletados diversos rolos em diferentes estados de conservação e dezenas de milhares de fragmentos, alguns tão diminutos que contêm apenas poucas letras."
"Riqueza e variedade de conteúdo
Uma vez analisados e classificados os fragmentos maiores, chegou-se à conclusão de que eles compõem um conjunto de 900 documentos escritos em hebraico, aramaico ou grego entre o fim do século III a.c. e o ano 68 da Era Cristã.
A maior parte deles está grafada sobre pergaminho, alguns em papiro, e há um único texto gravado em cobre. Mais de uma quarta parte desses documentos é constituída por cópias de livros do Antigo Testamento, em sua imensa maioria escritos em hebraico ou aramaico. Todos os livros canônicos da bíblia hebraica, salvo o de Ester e o de Neemias,
ali figuram, e frequentemente em vários exemplares: há pelo menos quatorze manuscritos do Deuteronômio, quinze de Isaías e dezessete dos Salmos. Encontram-se também três livros deuterocanônicos: Tobias, Eclesiástico e a Carta de Jerernias, que faz parte de Baruc.
Um segundo bloco de manuscritos está formado por excertos de livros apócrifos: Jubileus, Salmos Apócrifos, Livro de Enoc, Testamento dos Doze Patriarcas e Apócrifo do Gênesis. Faz parte também desse conjunto um grande número de outros escritos tais como a Oração de Nabônides, trechos de hinos, anotações e comentários, entre eles o Targum de Jó e o Comentário de Habacuc."
"Há, por fim, excertos do que se poderia chamar de "códigos disciplinares" - a Regra da Comunidade, o Regulamento da Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas, o Escrito de Damasco, bem como orações para cada dia do mês, textos poéticos, comentários de trechos da Bíblia, calendários, etc. A misteriosa comunidade de Qumran
Cabia, então, aos arqueólogos desvendar o mistério: como fora parar nas inóspitas cavernas uma tão valiosa biblioteca? Qual a autoria desses documentos, muitos dos quais inéditos?
A clave da solução estava, certamente, nas vizinhas ruínas de Qumran e na enigmática comunidade que as habitara até o primeiro século da nossa era. Como explica Pnina Shor, chefe da Seção de Conservação de Artefatos do Departamento de Antiguidades de Israel, em entrevista exclusiva à nossa revista, "o grupo que escreveu os manuscritos chama a si mesmo de yahad, que em hebraico significa 'o conjunto', 'a comunidade".
Ao longo dos anos não faltaram as controvérsias entre os especialistas sobre a identidade dessa comugrande maioria deles a identifica com os essênios/ ou, para ser mais preciso, com os membros de uma ala radical desse movimento.
Os essênios constituíam, junto com os fariseus e os saduceus, os três principais grupos religiosos em que se dividiam os judeus desde o segundo século antes de Cristo até a destruição de Jerusalém. Procuravam viver em estrito cumprimento da lei mosaica, atendo-se à letra desta mais ainda do que os próprios fariseus."
"Segundo uma corrente de autores, seu nome deriva do grego W(J'1VOI (os piedosos). Embora não sejam mencionados por este título nas Escrituras Sagradas, não faltam referências a eles em autores antigos como Plínio o Velho, Flávio Josefo e Filon de Alexandria.
Os essênios que moravam em Qumran compunham uma comunidade masculina, celibatária, de vida austera e regida por uma remosteiros cristãos surgidos séculos depois. E, como reconhece a mencionada Pnina Shor, responsável pela conservação dos manuscritos do Mar Morto, "a descrição que Josefo faz dos essênios e de como eles viviam é muitíssimo parecida com o que esse grupo narra sobre si mesmo".
O assentamento de Qumran foi arrasado no ano 68 por uma legião Romana. Ao que tudo indica, os essênios, ante o irresistível avanço das tropas imperiais, procuraram pôr a salvo sua biblioteca. No início, envolviam os rolos em tecidos e colocavam-nos em vasos de argila bem tampados; no fim, atiravam-nos nas cavidades da falésia, às pressas e sem qualquer proteção. Observa a este respeito o teólogo luterano Joachim Jeremias: "Os irmãos devem ter sido exterminados, até o último, neste ano de 68, pois, se um só deles tivesse escapado, as grutas não teriam guardado, até os nossos dias, o seu segredo".
O "fenômeno Qumran"
"A descoberta dos manuscritos do Mar Morto provocou o que o sacer-dote jesuíta J. R. Scheifler descreve como "fenômeno Qurnran": "uma prodigiosa e alarmante fecundidade literária, sobretudo entre os especialistas; e um inusitado interesse entre o grande público, às vezes com certos ressaibos de esnobismo e não sem uma dose de insegurança e inquietação entre os fiéis".
Com efeito, apenas nos primeiros quinze anos após a descoberta dos manuscritos vieram a público "mais de três mil títulos, entre obras e artigos, além de uma revista científica consagrada exclusivamente ao tema", acrescenta o estudioso jesuíta.
O "fenômeno Qurnran" também não tardou a transbordar dos círculos científicos para as revistas de generalidades. Ao longo desses quase sessenta anos desde a descoberta dos manuscritos, a imprensa dedicou ao tema rios de tinta e toneladas de papel, e ele ocupa hoje considerável espaço nas páginas web da internet.
Qual a causa mais profunda desse "inusitado interesse"?
Fidelidade das versões bíblicas
Antes de Gutenberg imprimir, em 1455, sua "bíblia de 42 linhas", cada exemplar das Sagradas Escrituras era uma transcrição singular feita por amanuenses. Ora, uma vez que não se conservam os originais dos livros vetero e neotestamentários, qual o grau de confiabilidade dessas inumeráveis "cópias de cópias" realizadas ao longo de dezenove ou mais séculos por escrivães de índoles e raças variadas?"
"Até a descoberta do Mar Morto, os mais antigos manuscritos com a Bíblia completa eram o Codex Vaticanus (séc. IV), o Sinaiticus (séc. IV) e o Alexandrinus (séc. V), todos eles provenientes da Septuaginta. Os primeiros textos massoréticos - escritos em hebreu e incluindo apenas os livros aceitos pela religião judaica - eram mais recentes: tanto o Codex Leningradensis como o Aleppo estão datados no século XI. Conservavam-se também fragmentos de textos anteriores, sendo, o mais antigo deles, um raro papiro do século segundo antes de Cristo, trazendo apenas o decálogo e um trecho do Deuteronôrnio.
Ora, em 1947, surgiu inesperadamente nas onze grutas do Qumran um grande número de textos bíblicos copiados entre o século 11 a.C e o século I da Era Cristã que podiam reforçar a autenticidade das versões da Sagrada Escritura hoje utilizadas pela Igreja, ou apontar-lhes as deficiências. Ademais, a maior parte dos livros do Antigo Testamento havia sido copiada em hebreu ou aramaico, o que permitia confrontá-los com o texto grego da Septuaginta. Foram essas as razões que tornaram a publicação dos documentos do Mar Morto tão esperada."
"Hoje em dia, tendo vindo a lume
o último volume da coleção com os manuscritos,8 qualquer pessoa com conhecimento de hebraico, aramaico e grego pode conferir as diferen¬tes versões, e verificar que, ao longo dos séculos, as traduções mantive¬ram uma impressionante fidelidade.
Por isso a Dra. Shor comenta que, através dos manuscritos do Mar Morto, pôde-se constatar como as traduções gregas e latinas da Sa¬grada Escritura conservaram-se fiéis aos originais hebraicos. "Quando os manuscritos foram encontrados, verificou-se que a exatidão das traduções é realmente de admirar e isso é emocionante".
Ao contrário, portanto, do que alguns previam, os manuscritos de Qumran vieram mostrar que são perfeitamente confiáveis os textos das Sagradas Escrituras conservados pela Igreja Católica e propostos aos fiéis durante quase vinte séculos. E desmontaram certas hipóteses imaginativas sobre a origem do Novo Testamento surgi das cem anos atrás.
Hipóteses imaginativas sobre os quatro Evangelhos
Com efeito, certos exegetas do início do século XX quiseram ver nos livros do Novo Testamento obras tardias, distantes da realidade que narram, influenciadas pela mitologia e filosofia grega. Ora, tal hipótese choca-se agora com a evidência fornecida pelos manuscritos do Mar Morto.
Muitas das expressões e estilos supostamente helênicos das redações neotestamentárias coincidem com expressões e estilos encontrados em tais manuscritos, os mais recentes dos quais, como vimos, remontam ao ano 68 d. C Demonstra-se, assim, terem sido eles de uso corrente na sociedade judaica da época de Jesus e, a fortiori, estarem os autores do Novo Testamento acostumados a pensar e a falar em hebraico ou aramaico, e não em grego."
"Mesmo não tendo sido provado haver entre os documentos de Qumran fragmentos de escritos neotestamentários, "vários textos-chaves contêm informações, ideias ou linguagem muito similares aos encontrados em certas passagens dos Evangelhos", como ainda nas Epístolas e nos Atos, embora não tenham sido redigidos por cristãos ou para cristãos. Por isso a Dra. Shor diz que, nesses manuscritos, "podem-se ver as origens do cristianismo, junto com textos bíblicos e outros textos judaicos. Constata-se assim a origem comum das duas religiões".
Mesmo no terceiro bloco de manuscritos - o qual, como vimos, contém textos doutrinários e disciplinares dos essênios - encontramos alguns elementos de grande interesse para a exegese neotestamentária."
"Nesses documentos inéditos pululam numerosas palavras, frases e descrições de fatos que reportam surpreendentemente a palavras, frases e fatos dos Evangelhos e de algumas epístolas de São Paulo: os "pobres de espírito", a "justificação pela Fé", luta entre os "filhos da luz" e os "filhos das trevas".
Merecem destaque duas expressões usadas por São Lucas: "será chamado Filho de Deus"
(Lc 1, 35) e "chamar-se-á Filho do Altíssimo" (Lc 1, 32). Uma geração anterior de exegetas tentava procurar a origem desses termos no paganismo helênico. Ora, elas são encontradas num texto aramaico de Qumran, no qual se lê claramente: "Será denominado filho de Deus, e o chamarão filho do Altíssimo" (4Q246). Parece, portanto, que tais conceitos se desenvolveram em círculos judaicos, o que constitui mais um prova do enraizamento hebraico, e não helênico, do Novo Testamento."
"Mais impressionante ainda foi a descoberta relacionada com a resposta dada por Nosso Senhor aos discípulos de São João Batista, que lhe foram perguntar: "Sois vós aquele que deve vir, ou devemos esperar por outro?" (Mt 11,3; Lc 7, 20). Jesus Ihes respondeu: "Ide e contai a João o que ouvistes e o que vistes: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, o Evangelho é anunciado aos pobres ... " (Mt 11, 4-5; Lc 7, 21-22).
Estas palavras de Nosso Senhor aludem claramente a Isaías (35, 5-6 e 61, 1). Porém, neste livro profético não se fala em ressurreição dos mortos. Ora, o fragmento 4Q521
de Qumran, referindo-se ao Messias, afirma: "Pois Ele curará os criticamente feridos, Ele ressuscitará os mortos,Ele trará boas novas aos pobres".
Conforme comenta John J. Collins, a impressionante semelhança entre esse fragmento e as citadas passagens dos Evangelhos de São Mateus e São Lucas permitem chegar à conclusão de que Jesus "proclama o reino de Deus, e por Seu ministério de cura e exorcismo, prova que está presente; e alega ser ungido e, pois, qualificado para proclamar a boa nova. [Esse fragmento] apoia de modo significativo a tradicional concepção de que Jesus via a Si mesmo como o Messias de Israel".
No total, foram identificados mais de 500 paralelos entre a linguagem de Qumram e a do Novo Testamento, muitos dos quais sem precedentes no Antigo Testamento. A imaginativa hipótese a propósito da origem helênica dos escritos neotestamentários fica, assim, definitivamente descartada."
Fonte: Arautos do Evangelho, nº 105, setembro 2010
Alguns meses depois, os beduínos venderam três desses rolos a um arqueólogo da Universidade Hebraica de Jerusalém e os restantes ao Metropolita do convento sírio-jacobita São Marcos, também da Cidade Santa.
Pouco tardou para os estudiosos perceberem que Mohammed havia feito a mais retumbante descoberta arqueológica do século XX: os famosos Manuscritos do Mar Morto. Aos poucos, pesquisadores começaram a explorar meticulosamente a região, enquanto os beduínos, por seu lado, faziam o mesmo. Assim, de 1949 a 1956, foram descobertas mais dez grutas, nas quais foram coletados diversos rolos em diferentes estados de conservação e dezenas de milhares de fragmentos, alguns tão diminutos que contêm apenas poucas letras."
"Riqueza e variedade de conteúdo
Uma vez analisados e classificados os fragmentos maiores, chegou-se à conclusão de que eles compõem um conjunto de 900 documentos escritos em hebraico, aramaico ou grego entre o fim do século III a.c. e o ano 68 da Era Cristã.
A maior parte deles está grafada sobre pergaminho, alguns em papiro, e há um único texto gravado em cobre. Mais de uma quarta parte desses documentos é constituída por cópias de livros do Antigo Testamento, em sua imensa maioria escritos em hebraico ou aramaico. Todos os livros canônicos da bíblia hebraica, salvo o de Ester e o de Neemias,
ali figuram, e frequentemente em vários exemplares: há pelo menos quatorze manuscritos do Deuteronômio, quinze de Isaías e dezessete dos Salmos. Encontram-se também três livros deuterocanônicos: Tobias, Eclesiástico e a Carta de Jerernias, que faz parte de Baruc.
Um segundo bloco de manuscritos está formado por excertos de livros apócrifos: Jubileus, Salmos Apócrifos, Livro de Enoc, Testamento dos Doze Patriarcas e Apócrifo do Gênesis. Faz parte também desse conjunto um grande número de outros escritos tais como a Oração de Nabônides, trechos de hinos, anotações e comentários, entre eles o Targum de Jó e o Comentário de Habacuc."
"Há, por fim, excertos do que se poderia chamar de "códigos disciplinares" - a Regra da Comunidade, o Regulamento da Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas, o Escrito de Damasco, bem como orações para cada dia do mês, textos poéticos, comentários de trechos da Bíblia, calendários, etc. A misteriosa comunidade de Qumran
Cabia, então, aos arqueólogos desvendar o mistério: como fora parar nas inóspitas cavernas uma tão valiosa biblioteca? Qual a autoria desses documentos, muitos dos quais inéditos?
A clave da solução estava, certamente, nas vizinhas ruínas de Qumran e na enigmática comunidade que as habitara até o primeiro século da nossa era. Como explica Pnina Shor, chefe da Seção de Conservação de Artefatos do Departamento de Antiguidades de Israel, em entrevista exclusiva à nossa revista, "o grupo que escreveu os manuscritos chama a si mesmo de yahad, que em hebraico significa 'o conjunto', 'a comunidade".
Ao longo dos anos não faltaram as controvérsias entre os especialistas sobre a identidade dessa comugrande maioria deles a identifica com os essênios/ ou, para ser mais preciso, com os membros de uma ala radical desse movimento.
Os essênios constituíam, junto com os fariseus e os saduceus, os três principais grupos religiosos em que se dividiam os judeus desde o segundo século antes de Cristo até a destruição de Jerusalém. Procuravam viver em estrito cumprimento da lei mosaica, atendo-se à letra desta mais ainda do que os próprios fariseus."
"Segundo uma corrente de autores, seu nome deriva do grego W(J'1VOI (os piedosos). Embora não sejam mencionados por este título nas Escrituras Sagradas, não faltam referências a eles em autores antigos como Plínio o Velho, Flávio Josefo e Filon de Alexandria.
Os essênios que moravam em Qumran compunham uma comunidade masculina, celibatária, de vida austera e regida por uma remosteiros cristãos surgidos séculos depois. E, como reconhece a mencionada Pnina Shor, responsável pela conservação dos manuscritos do Mar Morto, "a descrição que Josefo faz dos essênios e de como eles viviam é muitíssimo parecida com o que esse grupo narra sobre si mesmo".
O assentamento de Qumran foi arrasado no ano 68 por uma legião Romana. Ao que tudo indica, os essênios, ante o irresistível avanço das tropas imperiais, procuraram pôr a salvo sua biblioteca. No início, envolviam os rolos em tecidos e colocavam-nos em vasos de argila bem tampados; no fim, atiravam-nos nas cavidades da falésia, às pressas e sem qualquer proteção. Observa a este respeito o teólogo luterano Joachim Jeremias: "Os irmãos devem ter sido exterminados, até o último, neste ano de 68, pois, se um só deles tivesse escapado, as grutas não teriam guardado, até os nossos dias, o seu segredo".
O "fenômeno Qumran"
"A descoberta dos manuscritos do Mar Morto provocou o que o sacer-dote jesuíta J. R. Scheifler descreve como "fenômeno Qurnran": "uma prodigiosa e alarmante fecundidade literária, sobretudo entre os especialistas; e um inusitado interesse entre o grande público, às vezes com certos ressaibos de esnobismo e não sem uma dose de insegurança e inquietação entre os fiéis".
Com efeito, apenas nos primeiros quinze anos após a descoberta dos manuscritos vieram a público "mais de três mil títulos, entre obras e artigos, além de uma revista científica consagrada exclusivamente ao tema", acrescenta o estudioso jesuíta.
O "fenômeno Qurnran" também não tardou a transbordar dos círculos científicos para as revistas de generalidades. Ao longo desses quase sessenta anos desde a descoberta dos manuscritos, a imprensa dedicou ao tema rios de tinta e toneladas de papel, e ele ocupa hoje considerável espaço nas páginas web da internet.
Qual a causa mais profunda desse "inusitado interesse"?
Fidelidade das versões bíblicas
Antes de Gutenberg imprimir, em 1455, sua "bíblia de 42 linhas", cada exemplar das Sagradas Escrituras era uma transcrição singular feita por amanuenses. Ora, uma vez que não se conservam os originais dos livros vetero e neotestamentários, qual o grau de confiabilidade dessas inumeráveis "cópias de cópias" realizadas ao longo de dezenove ou mais séculos por escrivães de índoles e raças variadas?"
"Até a descoberta do Mar Morto, os mais antigos manuscritos com a Bíblia completa eram o Codex Vaticanus (séc. IV), o Sinaiticus (séc. IV) e o Alexandrinus (séc. V), todos eles provenientes da Septuaginta. Os primeiros textos massoréticos - escritos em hebreu e incluindo apenas os livros aceitos pela religião judaica - eram mais recentes: tanto o Codex Leningradensis como o Aleppo estão datados no século XI. Conservavam-se também fragmentos de textos anteriores, sendo, o mais antigo deles, um raro papiro do século segundo antes de Cristo, trazendo apenas o decálogo e um trecho do Deuteronôrnio.
Ora, em 1947, surgiu inesperadamente nas onze grutas do Qumran um grande número de textos bíblicos copiados entre o século 11 a.C e o século I da Era Cristã que podiam reforçar a autenticidade das versões da Sagrada Escritura hoje utilizadas pela Igreja, ou apontar-lhes as deficiências. Ademais, a maior parte dos livros do Antigo Testamento havia sido copiada em hebreu ou aramaico, o que permitia confrontá-los com o texto grego da Septuaginta. Foram essas as razões que tornaram a publicação dos documentos do Mar Morto tão esperada."
"Hoje em dia, tendo vindo a lume
o último volume da coleção com os manuscritos,8 qualquer pessoa com conhecimento de hebraico, aramaico e grego pode conferir as diferen¬tes versões, e verificar que, ao longo dos séculos, as traduções mantive¬ram uma impressionante fidelidade.
Por isso a Dra. Shor comenta que, através dos manuscritos do Mar Morto, pôde-se constatar como as traduções gregas e latinas da Sa¬grada Escritura conservaram-se fiéis aos originais hebraicos. "Quando os manuscritos foram encontrados, verificou-se que a exatidão das traduções é realmente de admirar e isso é emocionante".
Ao contrário, portanto, do que alguns previam, os manuscritos de Qumran vieram mostrar que são perfeitamente confiáveis os textos das Sagradas Escrituras conservados pela Igreja Católica e propostos aos fiéis durante quase vinte séculos. E desmontaram certas hipóteses imaginativas sobre a origem do Novo Testamento surgi das cem anos atrás.
Hipóteses imaginativas sobre os quatro Evangelhos
Com efeito, certos exegetas do início do século XX quiseram ver nos livros do Novo Testamento obras tardias, distantes da realidade que narram, influenciadas pela mitologia e filosofia grega. Ora, tal hipótese choca-se agora com a evidência fornecida pelos manuscritos do Mar Morto.
Muitas das expressões e estilos supostamente helênicos das redações neotestamentárias coincidem com expressões e estilos encontrados em tais manuscritos, os mais recentes dos quais, como vimos, remontam ao ano 68 d. C Demonstra-se, assim, terem sido eles de uso corrente na sociedade judaica da época de Jesus e, a fortiori, estarem os autores do Novo Testamento acostumados a pensar e a falar em hebraico ou aramaico, e não em grego."
"Mesmo não tendo sido provado haver entre os documentos de Qumran fragmentos de escritos neotestamentários, "vários textos-chaves contêm informações, ideias ou linguagem muito similares aos encontrados em certas passagens dos Evangelhos", como ainda nas Epístolas e nos Atos, embora não tenham sido redigidos por cristãos ou para cristãos. Por isso a Dra. Shor diz que, nesses manuscritos, "podem-se ver as origens do cristianismo, junto com textos bíblicos e outros textos judaicos. Constata-se assim a origem comum das duas religiões".
Mesmo no terceiro bloco de manuscritos - o qual, como vimos, contém textos doutrinários e disciplinares dos essênios - encontramos alguns elementos de grande interesse para a exegese neotestamentária."
"Nesses documentos inéditos pululam numerosas palavras, frases e descrições de fatos que reportam surpreendentemente a palavras, frases e fatos dos Evangelhos e de algumas epístolas de São Paulo: os "pobres de espírito", a "justificação pela Fé", luta entre os "filhos da luz" e os "filhos das trevas".
Merecem destaque duas expressões usadas por São Lucas: "será chamado Filho de Deus"
(Lc 1, 35) e "chamar-se-á Filho do Altíssimo" (Lc 1, 32). Uma geração anterior de exegetas tentava procurar a origem desses termos no paganismo helênico. Ora, elas são encontradas num texto aramaico de Qumran, no qual se lê claramente: "Será denominado filho de Deus, e o chamarão filho do Altíssimo" (4Q246). Parece, portanto, que tais conceitos se desenvolveram em círculos judaicos, o que constitui mais um prova do enraizamento hebraico, e não helênico, do Novo Testamento."
"Mais impressionante ainda foi a descoberta relacionada com a resposta dada por Nosso Senhor aos discípulos de São João Batista, que lhe foram perguntar: "Sois vós aquele que deve vir, ou devemos esperar por outro?" (Mt 11,3; Lc 7, 20). Jesus Ihes respondeu: "Ide e contai a João o que ouvistes e o que vistes: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, o Evangelho é anunciado aos pobres ... " (Mt 11, 4-5; Lc 7, 21-22).
Estas palavras de Nosso Senhor aludem claramente a Isaías (35, 5-6 e 61, 1). Porém, neste livro profético não se fala em ressurreição dos mortos. Ora, o fragmento 4Q521
de Qumran, referindo-se ao Messias, afirma: "Pois Ele curará os criticamente feridos, Ele ressuscitará os mortos,Ele trará boas novas aos pobres".
Conforme comenta John J. Collins, a impressionante semelhança entre esse fragmento e as citadas passagens dos Evangelhos de São Mateus e São Lucas permitem chegar à conclusão de que Jesus "proclama o reino de Deus, e por Seu ministério de cura e exorcismo, prova que está presente; e alega ser ungido e, pois, qualificado para proclamar a boa nova. [Esse fragmento] apoia de modo significativo a tradicional concepção de que Jesus via a Si mesmo como o Messias de Israel".
No total, foram identificados mais de 500 paralelos entre a linguagem de Qumram e a do Novo Testamento, muitos dos quais sem precedentes no Antigo Testamento. A imaginativa hipótese a propósito da origem helênica dos escritos neotestamentários fica, assim, definitivamente descartada."
Fonte: Arautos do Evangelho, nº 105, setembro 2010
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