As Evidências
Já houve bastante polêmica acerca dos eventos registrados em 1 Samuel 28:7-20. Nesta passagem, o primeiro rei de Israel, Saul, já nos últimos dias da sua vida, pede para uma necromante invocar o espírito de Samuel. Saul quer pedir conselhos de Samuel apesar de Samuel, ainda com vida, ter se recusado a dar mais conselhos. Aparentemente, Samuel aparece e se comunica com Saul, confirmando o que já havia profetizado, que Deus virou contra ele e que deu o reinado dele a outro – Davi.
A polêmica se levantou na interpretação desta passagem em relação à possível comunicação com os mortos. Alguns acreditam que Saul de fato comunicou-se com Samuel. Outros acreditam que não. Dos que acreditam que Saul não se comunicou com Samuel, há quem acredite que Saul foi enganado pela necromante. Outros afirmam que foi um espírito enganador, talvez até um demônio que se comunicou com Saul. Evidentemente, uma das preocupações dos intérpretes é com a possibilidade de reconhecer que a comunicação com os mortos é possível.
Apresentaremos os indícios que nos levam a crer que de fato Saul falou com o espírito do profeta morto Samuel. Em seguida apresentaremos evidências para confirmar esta conclusão. Finalmente, examinaremos a questão das implicações desta interpretação.
As Evidências
a. A evidência da Palavra
A evidência mais convincente de que Saul de fato se comunicou com o profeta morto Samuel é o testemunho da própria Bíblia. Veremos esta evidência com uma análise do próprio texto da passagem. Às vezes os intérpretes esquecem de um dos princípios básicos da interpretação – o exame detalhado do texto. Como resultado, alguns começam a atribuir, sem fundamento, palavras ou conceitos ao texto que jamais existiam na Palavra. Na nossa análise da passagem veremos que um exame objetivo do texto, mesmo em tradução, revelará que de fato Saul se comunicou com o espírito do falecido Samuel.
A passagem começa com Saul movido pelo medo à procura da médium de En-Dor (1 Sam 28:5-10). Os filisteus juntaram um grande exército contra Israel e, no início da passagem em questão Saul começa a perceber que ele vai perder a guerra. Ele pede para a médium ou necromante de En-Dor chamar Samuel (v.11), o profeta já morto (v.3). Samuel havia o guiado antes, mas o deixou depois que ele desobedeceu o Senhor (1 Sam 15:26).
Numa sessão de necromancia digna de um filme de terror, Saul se junta com a mulher quando ela tenta trazer de volta para esta vida o espírito do falecido Samuel. Assustada com a aparição do ser que ela invocou, a mulher grita em alta voz (v. 12).
Quando a mulher descreve o homem que ela vê, Saul entende que é Samuel (vv.12-14). Alguns intérpretes se detêm muito com a percepção de Saul, como se o resto do relato fosse apenas descrever o que Saul entendeu. No entanto, o relato segue no formato do resto do livro de Samuel, dando a entender que o que está sendo contado de fato ocorreu.
Em nenhum momento nos versículos posteriores há qualquer indício de que aquilo que é relatado seja fruto apenas da imaginação de Saul ou que a mulher o enganou. Não há palavras como “entendeu” ou “imaginou” descrevendo o que aconteceu. Em v. 15, por exemplo, quando a passagem relata as primeiras palavras do ser que apareceu, o versículo não diz “Aquele que Saul pensou ser Samuel disse...” ou “Aquele que Saul entendeu ser Samuel falou ...”. A passagem diz “Samuel disse a Saul...”. Estas palavras são as mesmas nas traduções de Almeida Atualizada e Corrigida e na Bíblia de Jerusalém. A NVI apenas muda para “Samuel perguntou a Saul”. Ou seja, as principais traduções em português dão a entender que aquilo que é relatado se baseia em fatos verídicos. Portanto não há evidências no texto que apóiam a interpretação de que Saul se confundiu ou que a necromante o enganou.
Logo em v.12 vemos o primeiro indício de que aquele que apareceu foi de fato Samuel. v.12 - “Vendo a mulher a Samuel, gritou em alta voz...” Lendo a passagem em português fica evidente que a mulher viu o próprio Samuel. A passagem não diz “A mulher disse que era Samuel” nem “A mulher fez de conta que era Samuel”, mas “Vendo a mulher a Samuel...”. O texto da própria Bíblia dá a entender que o que a mulher viu foi Samuel. Isso fica claro no português da Almeida Revista e Atualizada. Mas, para quem tiver dúvidas ainda, apresentamos em seguida o texto no original em hebraico e na tradução para grego da Septuaginta com interlinear em português:
Em seguida, todos os versículos que tratam do ser que apareceu o chamam de Samuel: v. 15 - “Samuel disse a Saul...”
v.16 - “Então disse Samuel...”
v. 20 - “... Saul ... foi tomado por grande medo por causa das palavras de Samuel...”
Vejamos o texto do início de 1 Samuel 28:15 no original em hebraico e na tradução para grego da Septuaginta com interlinear em português:
Embora seja difícil para alguns aceitarem, é preciso perguntar, quem é que a Bíblia diz que a mulher viu? [Veja v.12.] Quem é que a Bíblia diz que falou com Saul? [Veja vv.s 15 e 16.] A Bíblia diz que Saul foi tomado por grande medo por causa das palavras de quem? [Veja v. 20.] A resposta a todas estas perguntas, segundo a própria Bíblia é Samuel. De acordo com a própria Bíblia a mulher viu Samuel. Segundo a Bíblia, Samuel falou com Saul e foram as palavras de Samuel que Saul ouviu e temeu. Se a Bíblia chama este ser de Samuel, quem tem autoridade superior para negar esta afirmação?
Alguns alegam que aquilo que apareceu foi um espírito maligno ou enganador. Mas, nas Sagradas Escrituras, quando um profeta falso ou espírito maligno ou enganador está atuando, é revelado eventualmente quem aquele espírito representava (Juizes 9:23; 1 Reis 13:18; 22:22-23; 2 Crôn. 18:21-22). Observamos que no caso do evento relatado em 1 Samuel 28 a Bíblia nunca chama aquele que apareceu de um “espírito enganador” ou um “demônio mentiroso”. De fato, a Bíblia sempre chama aquele que apareceu de Samuel.
Podemos debater se seria justo ou lógico Deus permitir Samuel voltar para falar com Saul. Mas, no final, temos que decidir se vamos basear nossas conclusões no nosso raciocínio e lógica, ou naquilo que a própria Bíblia diz. Neste caso, a Bíblia diz que quem apareceu e quem falou foi Samuel. Quem se sente apto para falar contra o que a própria Bíblia diz neste caso?
b. A evidência do testemunho do ser que apareceu.
O ser que apareceu a Saul nunca falou nada contra a Palavra do Senhor. Pelo contrário, o ser simplesmente confirmou tudo que Deus havia profetizado a Saul. Este ser dificilmente poderia ser um espírito enganador, pois só confirmou tudo que a Palavra de Deus nos dissera até aquele ponto. Observamos ainda que o ser que apareceu sabia coisas que eram do conhecimento de Saul e Samuel. Se essas coisas eram sigilosas ou não, ninguém sabe ou pode afirmar. Mas é claro que o conhecimento deste ser é compatível com o que iríamos esperar de Samuel.
c. A evidência da profecia do ser que apareceu.
O ser que apareceu a Saul profetizou que Israel seria derrotado pelos filisteus, e que Saul e seus filhos iriam morrer logo em seguida. Esta profecia acaba se realizando. Em 1 Sam 31 lemos sobre a derrota de Israel pelos filisteus e a morte de Saul e seus filhos. Assim entendemos que este ser sabia não somente relatar coisas do passado de Saul, mas também profetizou com precisão sobre seu futuro.
Alguns pensam que não foi Samuel que falou porque parece que ele errou na sua profecia. O pensamento destas pessoas é de que quando o ser disse “amanhã ... estareis comigo” (v.19) ele errou. Parece que demorou mais de um dia para Saul e seus filhos serem mortos.
Primeiro, é preciso saber que a palavra “amanhã” no grego da LXX é aurion que pode ser literalmente “no dia seguinte” (Num 16:16; At. 23:20). Mas, esta palavra pode também significar “logo” (Mat 6:30; 1 Cor 15:32) ou algum tempo ainda indefinido do futuro (Gen 30:33; Deut 6:20). O mesmo se vê no hebraico, que usa a palavra machar, que pode significar literalmente “amanhã” (Num, 16:16), ou um tempo ainda indefinido do futuro (Gen 30:33; Deut. 6:20). Sabendo isto, uma interpretação possível do que o ser disse é, como traduzido por várias versões, “amanhã tu e teus filhos estareis comigo...”. Porém, uma outra tradução ainda perfeitamente aceitável do mesmo versículo seria “logo tu e teus filhos estareis comigo”. Dentro do contexto, tanto no grego como no hebraico, uma tradução que dá a entender que Saul e seus filhos morreriam “em breve” é totalmente aceitável.
Segundo, é importante lembrar que o que acontece logo em seguida (caps. 29-30) não aconteceu necessariamente em ordem cronológica após os eventos de Cap. 28. 1 Crôn. 10 fala da morte de Saul (que ocorre em 1 Sam 31). Mais adiante o mesmo livro, 1 Crôn. 12:19-20, fala dos eventos que ocorreram antes da morte de Saul, em 1 Sam 29. Isto não significa que as duas histórias estão em contradição, mas simplesmente que os historiadores não se sentiram obrigados a relatar as coisas precisamente em uma seqüência cronológica.
Um exemplo desta prática se vê na história da fuga da família de Jesus para o Egito. Em Mat 2:15 lemos sobre Herodes morrendo. Em v. 16, imediatamente em seguida, ele está vivo ainda. Na primeira seqüência o foco da história é a família de Jesus. Na segunda seqüência, o foco é Herodes e sua reação. Embora no relato de Mateus uma história segue outra, as duas histórias tratam de eventos que aconteceram ao mesmo tempo, embora em lugares distintos. É bem provável que este é o caso das histórias de 1 Sam 28 e 29. Uma história focaliza a vida de Saul, outra a vida de Davi, mas não necessariamente em ordem cronológica.
Uma seqüência que demonstra a mesma técnica pode ser encontrada no Evangelho de Lucas 3:19-20, onde Lucas conta sobre Herodes colocando João Batista na prisão. Mas, em seguida, Lucas relata o batismo de Jesus, que, segundo os outros Evangelhos, foi realizado por João Batista antes da sua prisão (Mt 3:13; Mc 1:9). No Evangelho de Marcos 6:17-29 lemos sobre a prisão de João bastante depois que realmente aconteceu, quando Herodes começa a ouvir falar de Jesus e teme que ele seja João ressuscitado. Em ambos os casos, um relato histórico acontece ou antes de outros eventos que seguiu, ou muito tempo depois. Isto não significa que os Evangelhos estão confusos, apenas que os autores nem sempre relataram um evento em sua seqüência cronológica.
Concluímos, portanto que o que este ser falou a Saul acabou acontecendo como profetizado. Isto também seria compatível com o papel de Samuel como profeta. Isto também seria conhecimento privilegiado e que apenas alguém com poderes sobrenaturais poderia profetizar.
Outra alegação de que a profecia do ser que falou a Saul não foi cumprida é baseada no fato de que um dos filhos de Saul, Is-Bosete não foi morto (2 Sam 2:10). A única coisa que temos a dizer sobre isto é que o ser que falou a Saul não disse que todos seus filhos iriam morrer. Ele apenas falou “tu e teus filhos” (1 Sam 28:19). Na verdade, todos os filhos de Saul que estavam lutando com ele naqueles dias morreram. Seria a respeito destes filhos que o ser estaria se referindo. Embora a passagem nem confirme nem contrarie, é bem possível que os outros filhos de Saul que morreram com ele estavam junto ao seu pai quando ele recebeu aquelas palavras de Samuel. Se este foi o caso, que seria perfeitamente natural, então Samuel estaria se referindo aos filhos que acompanharam Saul. Exatamente como profetizado, todos eles morreram.
d. A evidência de outras traduções e textos antigos
A frase de 1 Sam 28:15(a) transmite o mesmo sentido no Latim: “dixit autem Samuhel ad Saul quare inquietasti me ut suscitarer” Disse, pois, Samuel a Saul: Por que me inquietaste para subir/suscitar…?
Na Septuaginta (LXX), a tradução em grego do AT, o texto que resume a condenação de Saul em 1 Crôn. 10:13 diz “Por isso Saul morreu pelas suas transgressões cometidas contra o Senhor, contra a Palavra do Senhor, que ele não guardara, porque interrogara e consultara uma necromante, e Samuel o profeta o respondeu. ” (kai apekrinato autw Samouhl o profhthv)
O livro apócrifo Eclesiástico, incluído nas traduções Católicas, afirma “Depois disto, Samuel morreu e apareceu ao rei, predisse-lhe o fim da sua vida, e levantou a sua voz de debaixo da terra, profetizando, para destruir a impiedade do povo.” (Eclesiástico 46:23) (conhecido também como Sirach ou Sabedoria de Sirach 46:20)
e. Os dicionários de grego e hebraico mais atuais confirmam a comunicação com Samuel.
“… uma ocorrência da necromancia se menciona na história da visita que Saul fez à médium em En-Dor. A história da médium em En-Dor que fez subir o espírito de Samuel não lança dúvidas sobre a realidade daquilo que aconteceu, mas claramente condena a aventura.” (Colin Brown, artigo “Magia, Feitiçaria, Magos” em Brown, Colin, O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Edições Vida Nova, 1978, tradução Gordon Chown, Vol. III, p. 110.)
“ A palavra 'ôb refere-se claramente àqueles que consultavam espíritos, visto que 1 Samuel 28 descreve uma destas pessoas em ação. A famosa 'pitonisa de En-Dor era uma 'ôb. Embora Saul tivesse proibido 'feiticeiras' e 'mágicos' ele consultou um deles. Disfarçando-se, pediu que a 'médium' trouxesse Samuel dentre os mortos. Ela foi bem sucedida e, embora ele tenha-se queixado de ter sido perturbado, anunciou a Saul as más notícias…" (Robert L. Alden Artigo bAa ('ôb) “alguém que tem um espírito familiar” em Harris, R. Laird, Gleason L. Archer Jr. e Bruck K. Waltke, Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Edições Vida Nova, 1998, p. 24. Veja também Schökel, Luis Alonso Dicionário Bíblico Hebraico-Português São Paulo: Edições Paulus, 1991, p. 32.)
Embora nenhuma obra de interpretação secundária como dicionários ou comentários possam servir para nos dar a palavra final, devemos respeitar a experiência de peritos e estudiosos e considerar com todo respeito as suas conclusões. Quando obras como estas citadas concordam com todas as outras evidências apresentadas, principalmente da própria Palavra, temos motivos o suficiente para concluir que uma interpretação está com uma base confiável.
Conclusão Preliminar
O texto de 1 Samuel 28:7-20 nos leva a concluir com segurança que o espírito do falecido profeta Samuel de fato se comunicou com Saul em En-Dor. Podemos não compreender como Deus deixaria algo desta natureza ocorrer. Podemos estranhar tudo que ocorreu no evento em si e as implicações deste evento diante das proibições da Palavra em relação à comunicação com os mortos. Mas, a nossa interpretação da Palavra de Deus tem que se basear não naquilo que nós entendemos como lógico ou aceitável para nós, mas, naquilo que a própria Palavra diz. A chave para a interpretação tem que permanecer no texto em si e não na nossa lógica ou entendimento.
Em Parte II iremos examinar as implicações deste texto. É preciso refletir sobre os eventos relatados neste texto e mandamentos e proibições no resto da Bíblia. Se uma passagem descreve algo que outras passagens condenam, será que aquilo que é descrito serve para justificar a prática? Se de fato Saul se comunicou com Samuel podemos concluir que a comunicação com os mortos é permitida? Ou, será que Deus fez algo extraordinário naquela situação por causa dos propósitos insondáveis dEle e que não cabe a nós questionar Sua soberania? Examinaremos estas e outras dúvidas em Parte II deste estudo. Que Deus guie e guarde a todos na sua busca de conhecer e seguir a Palavra e a perfeita vontade do Senhor.
Copyright © 2004 Dennis Downing e www.hermeneutica.com. Todos os direitos reservados. Este material é de uso gratuito para fins pessoais ou de uso em igreja de forma não comercial desde que incluída a referência aos direitos autorais e a citação do site www.hermeneutica.com. Para reprodução ou distribuição em sites na Internet é necessário a inclusão da referência aos direitos autorais e um link ativo para o site www.hermeneutica.com. A venda ou vinculação deste material de qualquer forma comercial é proibida sem a autorização expressa por escrito do detentor dos direitos autorais.
Já houve bastante polêmica acerca dos eventos registrados em 1 Samuel 28:7-20. Nesta passagem, o primeiro rei de Israel, Saul, já nos últimos dias da sua vida, pede para uma necromante invocar o espírito de Samuel. Saul quer pedir conselhos de Samuel apesar de Samuel, ainda com vida, ter se recusado a dar mais conselhos. Aparentemente, Samuel aparece e se comunica com Saul, confirmando o que já havia profetizado, que Deus virou contra ele e que deu o reinado dele a outro – Davi.
A polêmica se levantou na interpretação desta passagem em relação à possível comunicação com os mortos. Alguns acreditam que Saul de fato comunicou-se com Samuel. Outros acreditam que não. Dos que acreditam que Saul não se comunicou com Samuel, há quem acredite que Saul foi enganado pela necromante. Outros afirmam que foi um espírito enganador, talvez até um demônio que se comunicou com Saul. Evidentemente, uma das preocupações dos intérpretes é com a possibilidade de reconhecer que a comunicação com os mortos é possível.
Apresentaremos os indícios que nos levam a crer que de fato Saul falou com o espírito do profeta morto Samuel. Em seguida apresentaremos evidências para confirmar esta conclusão. Finalmente, examinaremos a questão das implicações desta interpretação.
As Evidências
a. A evidência da Palavra
A evidência mais convincente de que Saul de fato se comunicou com o profeta morto Samuel é o testemunho da própria Bíblia. Veremos esta evidência com uma análise do próprio texto da passagem. Às vezes os intérpretes esquecem de um dos princípios básicos da interpretação – o exame detalhado do texto. Como resultado, alguns começam a atribuir, sem fundamento, palavras ou conceitos ao texto que jamais existiam na Palavra. Na nossa análise da passagem veremos que um exame objetivo do texto, mesmo em tradução, revelará que de fato Saul se comunicou com o espírito do falecido Samuel.
A passagem começa com Saul movido pelo medo à procura da médium de En-Dor (1 Sam 28:5-10). Os filisteus juntaram um grande exército contra Israel e, no início da passagem em questão Saul começa a perceber que ele vai perder a guerra. Ele pede para a médium ou necromante de En-Dor chamar Samuel (v.11), o profeta já morto (v.3). Samuel havia o guiado antes, mas o deixou depois que ele desobedeceu o Senhor (1 Sam 15:26).
Numa sessão de necromancia digna de um filme de terror, Saul se junta com a mulher quando ela tenta trazer de volta para esta vida o espírito do falecido Samuel. Assustada com a aparição do ser que ela invocou, a mulher grita em alta voz (v. 12).
Quando a mulher descreve o homem que ela vê, Saul entende que é Samuel (vv.12-14). Alguns intérpretes se detêm muito com a percepção de Saul, como se o resto do relato fosse apenas descrever o que Saul entendeu. No entanto, o relato segue no formato do resto do livro de Samuel, dando a entender que o que está sendo contado de fato ocorreu.
Em nenhum momento nos versículos posteriores há qualquer indício de que aquilo que é relatado seja fruto apenas da imaginação de Saul ou que a mulher o enganou. Não há palavras como “entendeu” ou “imaginou” descrevendo o que aconteceu. Em v. 15, por exemplo, quando a passagem relata as primeiras palavras do ser que apareceu, o versículo não diz “Aquele que Saul pensou ser Samuel disse...” ou “Aquele que Saul entendeu ser Samuel falou ...”. A passagem diz “Samuel disse a Saul...”. Estas palavras são as mesmas nas traduções de Almeida Atualizada e Corrigida e na Bíblia de Jerusalém. A NVI apenas muda para “Samuel perguntou a Saul”. Ou seja, as principais traduções em português dão a entender que aquilo que é relatado se baseia em fatos verídicos. Portanto não há evidências no texto que apóiam a interpretação de que Saul se confundiu ou que a necromante o enganou.
Logo em v.12 vemos o primeiro indício de que aquele que apareceu foi de fato Samuel. v.12 - “Vendo a mulher a Samuel, gritou em alta voz...” Lendo a passagem em português fica evidente que a mulher viu o próprio Samuel. A passagem não diz “A mulher disse que era Samuel” nem “A mulher fez de conta que era Samuel”, mas “Vendo a mulher a Samuel...”. O texto da própria Bíblia dá a entender que o que a mulher viu foi Samuel. Isso fica claro no português da Almeida Revista e Atualizada. Mas, para quem tiver dúvidas ainda, apresentamos em seguida o texto no original em hebraico e na tradução para grego da Septuaginta com interlinear em português:
Em seguida, todos os versículos que tratam do ser que apareceu o chamam de Samuel: v. 15 - “Samuel disse a Saul...”
v.16 - “Então disse Samuel...”
v. 20 - “... Saul ... foi tomado por grande medo por causa das palavras de Samuel...”
Vejamos o texto do início de 1 Samuel 28:15 no original em hebraico e na tradução para grego da Septuaginta com interlinear em português:
Embora seja difícil para alguns aceitarem, é preciso perguntar, quem é que a Bíblia diz que a mulher viu? [Veja v.12.] Quem é que a Bíblia diz que falou com Saul? [Veja vv.s 15 e 16.] A Bíblia diz que Saul foi tomado por grande medo por causa das palavras de quem? [Veja v. 20.] A resposta a todas estas perguntas, segundo a própria Bíblia é Samuel. De acordo com a própria Bíblia a mulher viu Samuel. Segundo a Bíblia, Samuel falou com Saul e foram as palavras de Samuel que Saul ouviu e temeu. Se a Bíblia chama este ser de Samuel, quem tem autoridade superior para negar esta afirmação?
Alguns alegam que aquilo que apareceu foi um espírito maligno ou enganador. Mas, nas Sagradas Escrituras, quando um profeta falso ou espírito maligno ou enganador está atuando, é revelado eventualmente quem aquele espírito representava (Juizes 9:23; 1 Reis 13:18; 22:22-23; 2 Crôn. 18:21-22). Observamos que no caso do evento relatado em 1 Samuel 28 a Bíblia nunca chama aquele que apareceu de um “espírito enganador” ou um “demônio mentiroso”. De fato, a Bíblia sempre chama aquele que apareceu de Samuel.
Podemos debater se seria justo ou lógico Deus permitir Samuel voltar para falar com Saul. Mas, no final, temos que decidir se vamos basear nossas conclusões no nosso raciocínio e lógica, ou naquilo que a própria Bíblia diz. Neste caso, a Bíblia diz que quem apareceu e quem falou foi Samuel. Quem se sente apto para falar contra o que a própria Bíblia diz neste caso?
b. A evidência do testemunho do ser que apareceu.
O ser que apareceu a Saul nunca falou nada contra a Palavra do Senhor. Pelo contrário, o ser simplesmente confirmou tudo que Deus havia profetizado a Saul. Este ser dificilmente poderia ser um espírito enganador, pois só confirmou tudo que a Palavra de Deus nos dissera até aquele ponto. Observamos ainda que o ser que apareceu sabia coisas que eram do conhecimento de Saul e Samuel. Se essas coisas eram sigilosas ou não, ninguém sabe ou pode afirmar. Mas é claro que o conhecimento deste ser é compatível com o que iríamos esperar de Samuel.
c. A evidência da profecia do ser que apareceu.
O ser que apareceu a Saul profetizou que Israel seria derrotado pelos filisteus, e que Saul e seus filhos iriam morrer logo em seguida. Esta profecia acaba se realizando. Em 1 Sam 31 lemos sobre a derrota de Israel pelos filisteus e a morte de Saul e seus filhos. Assim entendemos que este ser sabia não somente relatar coisas do passado de Saul, mas também profetizou com precisão sobre seu futuro.
Alguns pensam que não foi Samuel que falou porque parece que ele errou na sua profecia. O pensamento destas pessoas é de que quando o ser disse “amanhã ... estareis comigo” (v.19) ele errou. Parece que demorou mais de um dia para Saul e seus filhos serem mortos.
Primeiro, é preciso saber que a palavra “amanhã” no grego da LXX é aurion que pode ser literalmente “no dia seguinte” (Num 16:16; At. 23:20). Mas, esta palavra pode também significar “logo” (Mat 6:30; 1 Cor 15:32) ou algum tempo ainda indefinido do futuro (Gen 30:33; Deut 6:20). O mesmo se vê no hebraico, que usa a palavra machar, que pode significar literalmente “amanhã” (Num, 16:16), ou um tempo ainda indefinido do futuro (Gen 30:33; Deut. 6:20). Sabendo isto, uma interpretação possível do que o ser disse é, como traduzido por várias versões, “amanhã tu e teus filhos estareis comigo...”. Porém, uma outra tradução ainda perfeitamente aceitável do mesmo versículo seria “logo tu e teus filhos estareis comigo”. Dentro do contexto, tanto no grego como no hebraico, uma tradução que dá a entender que Saul e seus filhos morreriam “em breve” é totalmente aceitável.
Segundo, é importante lembrar que o que acontece logo em seguida (caps. 29-30) não aconteceu necessariamente em ordem cronológica após os eventos de Cap. 28. 1 Crôn. 10 fala da morte de Saul (que ocorre em 1 Sam 31). Mais adiante o mesmo livro, 1 Crôn. 12:19-20, fala dos eventos que ocorreram antes da morte de Saul, em 1 Sam 29. Isto não significa que as duas histórias estão em contradição, mas simplesmente que os historiadores não se sentiram obrigados a relatar as coisas precisamente em uma seqüência cronológica.
Um exemplo desta prática se vê na história da fuga da família de Jesus para o Egito. Em Mat 2:15 lemos sobre Herodes morrendo. Em v. 16, imediatamente em seguida, ele está vivo ainda. Na primeira seqüência o foco da história é a família de Jesus. Na segunda seqüência, o foco é Herodes e sua reação. Embora no relato de Mateus uma história segue outra, as duas histórias tratam de eventos que aconteceram ao mesmo tempo, embora em lugares distintos. É bem provável que este é o caso das histórias de 1 Sam 28 e 29. Uma história focaliza a vida de Saul, outra a vida de Davi, mas não necessariamente em ordem cronológica.
Uma seqüência que demonstra a mesma técnica pode ser encontrada no Evangelho de Lucas 3:19-20, onde Lucas conta sobre Herodes colocando João Batista na prisão. Mas, em seguida, Lucas relata o batismo de Jesus, que, segundo os outros Evangelhos, foi realizado por João Batista antes da sua prisão (Mt 3:13; Mc 1:9). No Evangelho de Marcos 6:17-29 lemos sobre a prisão de João bastante depois que realmente aconteceu, quando Herodes começa a ouvir falar de Jesus e teme que ele seja João ressuscitado. Em ambos os casos, um relato histórico acontece ou antes de outros eventos que seguiu, ou muito tempo depois. Isto não significa que os Evangelhos estão confusos, apenas que os autores nem sempre relataram um evento em sua seqüência cronológica.
Concluímos, portanto que o que este ser falou a Saul acabou acontecendo como profetizado. Isto também seria compatível com o papel de Samuel como profeta. Isto também seria conhecimento privilegiado e que apenas alguém com poderes sobrenaturais poderia profetizar.
Outra alegação de que a profecia do ser que falou a Saul não foi cumprida é baseada no fato de que um dos filhos de Saul, Is-Bosete não foi morto (2 Sam 2:10). A única coisa que temos a dizer sobre isto é que o ser que falou a Saul não disse que todos seus filhos iriam morrer. Ele apenas falou “tu e teus filhos” (1 Sam 28:19). Na verdade, todos os filhos de Saul que estavam lutando com ele naqueles dias morreram. Seria a respeito destes filhos que o ser estaria se referindo. Embora a passagem nem confirme nem contrarie, é bem possível que os outros filhos de Saul que morreram com ele estavam junto ao seu pai quando ele recebeu aquelas palavras de Samuel. Se este foi o caso, que seria perfeitamente natural, então Samuel estaria se referindo aos filhos que acompanharam Saul. Exatamente como profetizado, todos eles morreram.
d. A evidência de outras traduções e textos antigos
A frase de 1 Sam 28:15(a) transmite o mesmo sentido no Latim: “dixit autem Samuhel ad Saul quare inquietasti me ut suscitarer” Disse, pois, Samuel a Saul: Por que me inquietaste para subir/suscitar…?
Na Septuaginta (LXX), a tradução em grego do AT, o texto que resume a condenação de Saul em 1 Crôn. 10:13 diz “Por isso Saul morreu pelas suas transgressões cometidas contra o Senhor, contra a Palavra do Senhor, que ele não guardara, porque interrogara e consultara uma necromante, e Samuel o profeta o respondeu. ” (kai apekrinato autw Samouhl o profhthv)
O livro apócrifo Eclesiástico, incluído nas traduções Católicas, afirma “Depois disto, Samuel morreu e apareceu ao rei, predisse-lhe o fim da sua vida, e levantou a sua voz de debaixo da terra, profetizando, para destruir a impiedade do povo.” (Eclesiástico 46:23) (conhecido também como Sirach ou Sabedoria de Sirach 46:20)
e. Os dicionários de grego e hebraico mais atuais confirmam a comunicação com Samuel.
“… uma ocorrência da necromancia se menciona na história da visita que Saul fez à médium em En-Dor. A história da médium em En-Dor que fez subir o espírito de Samuel não lança dúvidas sobre a realidade daquilo que aconteceu, mas claramente condena a aventura.” (Colin Brown, artigo “Magia, Feitiçaria, Magos” em Brown, Colin, O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Edições Vida Nova, 1978, tradução Gordon Chown, Vol. III, p. 110.)
“ A palavra 'ôb refere-se claramente àqueles que consultavam espíritos, visto que 1 Samuel 28 descreve uma destas pessoas em ação. A famosa 'pitonisa de En-Dor era uma 'ôb. Embora Saul tivesse proibido 'feiticeiras' e 'mágicos' ele consultou um deles. Disfarçando-se, pediu que a 'médium' trouxesse Samuel dentre os mortos. Ela foi bem sucedida e, embora ele tenha-se queixado de ter sido perturbado, anunciou a Saul as más notícias…" (Robert L. Alden Artigo bAa ('ôb) “alguém que tem um espírito familiar” em Harris, R. Laird, Gleason L. Archer Jr. e Bruck K. Waltke, Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Edições Vida Nova, 1998, p. 24. Veja também Schökel, Luis Alonso Dicionário Bíblico Hebraico-Português São Paulo: Edições Paulus, 1991, p. 32.)
Embora nenhuma obra de interpretação secundária como dicionários ou comentários possam servir para nos dar a palavra final, devemos respeitar a experiência de peritos e estudiosos e considerar com todo respeito as suas conclusões. Quando obras como estas citadas concordam com todas as outras evidências apresentadas, principalmente da própria Palavra, temos motivos o suficiente para concluir que uma interpretação está com uma base confiável.
Conclusão Preliminar
O texto de 1 Samuel 28:7-20 nos leva a concluir com segurança que o espírito do falecido profeta Samuel de fato se comunicou com Saul em En-Dor. Podemos não compreender como Deus deixaria algo desta natureza ocorrer. Podemos estranhar tudo que ocorreu no evento em si e as implicações deste evento diante das proibições da Palavra em relação à comunicação com os mortos. Mas, a nossa interpretação da Palavra de Deus tem que se basear não naquilo que nós entendemos como lógico ou aceitável para nós, mas, naquilo que a própria Palavra diz. A chave para a interpretação tem que permanecer no texto em si e não na nossa lógica ou entendimento.
Em Parte II iremos examinar as implicações deste texto. É preciso refletir sobre os eventos relatados neste texto e mandamentos e proibições no resto da Bíblia. Se uma passagem descreve algo que outras passagens condenam, será que aquilo que é descrito serve para justificar a prática? Se de fato Saul se comunicou com Samuel podemos concluir que a comunicação com os mortos é permitida? Ou, será que Deus fez algo extraordinário naquela situação por causa dos propósitos insondáveis dEle e que não cabe a nós questionar Sua soberania? Examinaremos estas e outras dúvidas em Parte II deste estudo. Que Deus guie e guarde a todos na sua busca de conhecer e seguir a Palavra e a perfeita vontade do Senhor.
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