Doenças e sonhos são objetos em torno dos quais a imaginação popular de todos os tempos muito se exerceu, levando facilmente o indivíduo à superstição. Ora os autores dos livros sagrados frequentemente se referem a doenças ou apresentam interpretações de sonhos em termos que parecem simplórios, pouco condizentes com a Sabedoria de Deus e as concepções de um homem culto. Eis a razão por que o capítulo presente se propõe considerar o problema e procurar o autêntico significado que os mencionados fenômenos devem ter no livro inspirado pelo Senhor Deus.
§ 1.º AS DOENÇAS
As doenças, como bem se entende, sempre solicitaram a atenção do homem, estimulando-o a perscrutar-lhes as origens e os remédios. Visto que os antigos costumavam considerar todas as coisas à luz da religião, também às enfermidades físicas sabiam dar interpretação religiosa; julgavam mesmo necessário vê-las através deste prisma. Interessa-nos verificar como isto se fez entre os povos pagãos e como a Sagrada Escritura, por sua vez, aprecia as doenças.
1. ENTRE AS NAÇÕES PAGÃS
Fora de Israel, era comum atribuir as moléstias do corpo à ação de maus espíritos; até certas funções fisiológicas (como a menstruação, a conceição de prole, o parto) e os cadáveres eram tidos como impuros, ou seja, causados pela influência de seres invisíveis nefastos. Dos efeitos desses agentes malignos e, em particular, da doença, devia o enfermo libertar-se recorrendo não tanto a processos e remédios cientificamente estudados, mas principalmente a preces, sacrifícios, exorcismos e outros ritos religiosos, que purificariam o homem e afugentariam os espíritos. Mesmo ao aplicar meios terapêuticos autênticos, ainda hoje usuais, os antigos os justificavam por motivos religiosos; assim julgavam que massagens, emprego de vapores teriam por efeito calcar ou molestar e, por fim, expelir o demônio¹ do corpo do paciente, ou então deslocar o mau espírito do órgão afetado para os pés do doente, donde ele partiria definitivamente; com o mesmo fim, praticavam cortes na carne do enfermo, provocando escapamento de sangue, sangue que consigo levaria o espírito funesto. Prescreviam outrossim banhos de purificação para a mulher, assim como para as pessoas que provocassem a morte de outrem, tocassem cadáveres etc.2
É importante notar que nem todos os casos de presumida influência dos espíritos maus eram casos de culpa moral; muitos implicavam simplesmente fenômenos naturais, fisiológicos. Os antigos, porém, tendiam a conceber tudo que se refere à vida humana (sua geração, conservação, debilitação, robustecimento e extinção) como sujeito a seres superiores ao homem. O fundamento principal desta tese é assaz evidente: todo indivíduo tem consciência de não ser senhor de sua vida; não a produziu nem a conserva indefinidamente. Em particular, as doenças, pondo em perigo o bem fundamental, que é a existência, eram tidas na conta de castigo infligido pela Divindade ou pelos espíritos que os homens houvessem irritado. Conforme crenças orientais, a culpa, causa da moléstia, poderia ter sido cometida numa existência anterior à presente.
Ainda dois outros fatores, ao menos entre os povos primitivos anteriores a Israel, terão contribuído para que se admitisse a influência de maus espíritos na origem de fenômenos fisiológicos: o caráter mais ou menos repugnante de certos dentre estes (lepra, chagas...), e a preocupação de conservar na sociedade rude a necessária higiene; às leis de saúde, que são graves, não se podia dar significado mais autoritativo do que o significado religioso.3
À luz destes pressupostos explicam-se estranhos pormenores de terapêutica e religiosidade antigas: "doença divina" (divinus morbus, entre os romanos) era o nome que se dava à epilepsia, moléstia em que o homem, contorcendo-se desfigurado, parece claramente sujeito à moção de um ser superior. Ao ver um louco, costumavam os orientais arredar-se com temor sagrado, pois julgavam que tal homem (medjnoun) estava possuído por um djin ou gênio;4 tendo Deus colocado a mão sobre ele, maltratá-lo seria o mesmo que atentar contra os direitos do Todo-Poderoso. Explica-se também que códigos legislativos religiosos da antigüidade ameaçassem doenças àqueles que ousassem violar os seus preceitos.5 Entende-se outrossim que a técnica de curar moléstias tenha recorrido a exorcismos, ritos de expiação etc.;6 vice-versa, muitos cânticos penitenciais dos antigos povos pediam não somente o perdão de pecados (a cura da alma), mas também a cessação de doenças (a cura do corpo).7 Depois de Alexandre Magno, os médicos eram também filósofos, isto é, portadores da sabedoria moral necessária para curar as chagas ou os vícios do espírito; medicina e filosofia não raro eram simultaneamente cultivadas.8
Não se poderia silenciar, mesmo num estudo de Sagrada Escritura, ainda o seguinte aspecto da concepção pagã concernente às doenças. Na mitologia grega tornou-se muito estimada a figura do "herói doente e sofredor"; entre outros, sobressai o tipo de Hércules, o super-homem provado pela dor: era afetado, sim, por coceira que o deprimia e tornava melancólico, pelo mal dos pesadelos noturnos que lhe infligia o demônio Efialtes; o contato com o sangue de Nessos, portador do veneno da hidra, lhe fez contrair uma espécie de lepra acompanhada de cãibras... Somente a morte e a apoteose puseram termo aos padecimentos de Hércules. Como os demais povos antigos, os gregos costumavam atribuir as doenças à ira de deuses ou demônios. Interessante, porém, é que explicavam também desta forma as moléstias dos heróis mitológicos; nisto manifestavam um traço profundo da sua psicologia e religiosidade, a saber: o senso trágico e, ao mesmo tempo, otimista do povo grego; a ação dos demônios, o furor e a inveja dos deuses desencadeando-se sobre o homem eram considerados fatores, e fatores necessários, do desenvolvimento do indivíduo; os mitos punham em realce que é pela dor que o homem se comprova e atinge a sua maturidade, a plenitude. Assim é que os pagãos reabilitavam ou resgatavam o conceito de doenças e flagelos decorrentes das vicissitudes desta vida.
2. NO POVO DE ISRAEL
Passemos agora à consideração dos livros sagrados de Israel.
Oriundos no mundo greco-oriental em que as idéias acima tinham curso, os textos bíblicos concernentes às doenças apresentam suas analogias com os documentos profanos antigos. A mentalidade, porém, que os perpassa é bem diversa da que inspirou os trechos pagãos.
Na mentalidade de Israel e na dos demais povos há um fundo doutrinário comum: a crença de que as doenças provêm de uma ofensa do homem à Divindade; são castigo.
Esta tese, porém, entre os pagãos era explicada de acordo com as idéias politeístas de cada povo: admitindo muitos deuses e semideuses, admitiam também muitos espíritos causadores cada qual de determinada doença; julgavam outrossim possível que estes punidores do homem pudessem proceder por mero desejo de vingança ou inveja, deixando-se aplacar logo que se lhes oferecessem "dádivas", à semelhança de homens apaixonados.
Em Israel, ao contrário, a concepção era radicalmente monoteísta: o primeiro pai, representante do gênero humano, revoltou-se contra o Criador Bondoso no paraíso; em conseqüência, todos os seus descendentes sofrem a revolta da natureza; experimentam no próprio corpo um desequilíbrio (doenças), que reflete o desequilíbrio introduzido por Adão nas suas relações com Deus; os filhos de Adão, acrescentando à culpa do primeiro homem as suas faltas pessoais, intensificam a desordem, tornam-se mais e mais sujeitos ao padecimento e à moléstia. Assim o drama do pecado marcou profundamente a filosofia dos judeus atinente à doença; freqüentemente no Antigo Testamento ocorre o binômio "peçado-doença", como se estes dois termos fossem estritamente correlativos entre si. Notem-se os seguintes exemplos:
a) aos transgressores da Lei de Deus, Moisés prediz justos castigos, entre os quais a irrupção de doenças:
"Se não fores solícito em observar todas as palavras desta lei,... o Senhor infligirá a ti e à tua posteridade pragas extraordinárias, pragas graves e persistentes, doenças perniciosas e tenazes. Fará voltar sobre ti todas as moléstias do Egito, diante das quais tremias, e elas se prenderão a ti. Além disto, o Senhor desencadeará sobre ti toda espécie de doenças e pragas que não são mencionadas neste livro da Lei, até que sejas exterminado" (Dt 28, 58-61)
b) precisamente por serem tidos como pecadores denunciados pela própria justiça divina, os israelitas às vezes infligiam aos seus enfermos tratamento de desprezo e escárnio (tratamento que a Bíblia refere, mas de modo nenhum aprova); assim procederam as esposas de Jó e Tobias em relação aos respectivos maridos (cf. Jó 2, 9s; Tb 2, 15-23), os amigos de que se queixa o salmista no SI 40, 6-l0;
c) particularmente digno de nota é o episódio de 2Cr 16, 12: o autor
narra que o rei Aza de Judá, tendo-se mostrado infiel ao Senhor, foi acometido de uma doença dos pés (gota?), que muito o fazia sofrer. Ora, para cúmulo de sua infidelidade e infelicidade, Aza "mesmo durante a doença não procurou o Senhor, mas os médicos"! De tal forma os conceitos de "pecado" e "doença" eram associados entre si que não se via lugar para uma cura meramente científica das moléstias; procurar recuperar a saúde por simples recurso à medicina parecia ser endurecimento ou obstinação do pecador ferido!
d) O texto de 2Cr 16, 12, porém, de modo nenhum implica menosprezo em Israel para com os médicos ou profissionais da ciência. Haja vista a recomendação do sábio mestre em Eclo 38:
"Honra o médico por causa das tuas indigências,
Pois foi o Altíssimo que o criou...
A ciência do médico lhe faz levantar a cabeça,
Ele é admirado em presença dos grandes
O Senhor fez a terra produzir os medicamentos,
E o homem sensato não os desdenha
Por eles o homem produz a cura e extingue a dor
Meu filho, se caíres doente, não desprezes meu conselho,
Mas ora ao Senhor, e Ele te curará
Afasta o pecado, levanta as tuas mãos
E purifica de todo pecado o teu coração
A seguir, dá acesso ao médico; foi o Senhor que o criou.
Que ele não te abandone, pois a sua arte te é necessária
Suas mãos terão sucesso,
Pois também eles (os médicos) oram ao Senhor".
(vv 1.3s. 7.9s. 12-14)
Estes dizeres, que datam aproximadamente do ano 200 a.C., parecem visar a uma tendência do judaísmo a vilipendiar a medicina. O livro apócrifo de Henoque, escrito pouco antes do Eclo, incriminava os anjos maus por haverem comunicado aos homens a ciência dos diagnósticos e dos remédios (8, 3s; 69,8-12) Contrariamente, o autor sagrado inculca que o médico tem vocação divina e é indispensável; tenha-se confiança nele, embora relativa; o enfermo deve primeiramente confiar-se a Deus e purificar a alma, a seguir, poderá esperar alívio da intervenção do médico, o qual há de recorrer tanto à ciência quanto à oração (cf. 12-14).
Admitindo nos termos acima o pecado como raiz das doenças, os israelitas reconheciam que o Senhor Deus, ao punir alguém com moléstia ou morte, se pode servir do ministério de espíritos ou anjos. Foi o que realmente se deu na mortandade dos primogênitos do Egito (cf Êx 12, 23), no flagelo da peste que castigou o reino de Davi (cf 2Sm 24, 16s), no extermínio do exército dos assírios (cf Is 37, 36; o mal desencadeado pelo anjo terá sido uma epidemia mórbida, como se julga), na história de Jó (cf Jó 1, 12; 2, 7), na de Sara (cf Tb 3, 8). Contudo - e isto merece toda a atenção - jamais o "anjo do extermínio ou da enfermidade" nos textos bíblicos é apresentado como outro deus ou como semideus, de sorte a violar o monoteísmo de Israel;9 Javé manda ou permite, e o anjo executa o desígnio do Senhor Deus.
Esta mesma verdade é indiretamente confirmada pelo fato de que a legislação de Israel não tolerava a existência de curandeiros ou magos. Tais homens se diziam - e ainda hoje se dizem - possuidores de fórmulas ou receitas extorquidas da Divindade por indústria do homem ou reveladas por um espírito superior, às vezes invejoso de outro; dispondo das mesmas, o curandeiro consegue "forçar" a Divindade a produzir o que o "sábio" quer." 10 Está claro que tais concepções só se podem originar no politeísmo ou num ambiente em que a noção de Deus é deficiente; são incompatíveis com a crença num só Deus, Senhor de todos os espíritos e homens, crença que toda a literatura israelita professava solenemente (cf., por exemplo, Êx 20, 2-6; Dt 5, 6-lO).
As noções dos hebreus se aperfeiçoaram com a revelação cristã (...)
Os escritos do Novo Testamento se sobrepõem à concepção israelita no tocante às doenças, completando-a, porém, e envolvendo-a numa visão otimista do universo.
Encontra-se ainda, e repetidamente, a tese de que a moléstia é conseqüência do pecado, podendo ser provocada por um mau espírito ou por Satanás:
"Jesus ensinava numa sinagoga em dia de Sábado.
Encontrava-se lá uma mulher possuída, havia dezoito anos, por um espírito que a tornava enferma; era curva, e não podia em absoluto erguer a cabeça... " O Senhor curou-a, e disse: "Essa filha de Abraão, que Satanás paralisava havia dezoito anos, não convinha libertá-la desse vínculo em dia de sábado?" (Lc 13, 10s.16)
Episódios semelhantes ocorrem em Mt 12, 22s; Lc 11, 14; Mc 9, 17.
Em Jo 5, 14, o Senhor, tendo curado um paralítico, recomenda-lhe
"Eis-te são; não peques mais, a fim de que não te aconteça algo de pior".
Na comunidade de Corinto doenças e mortes prematuras entre os fiéis eram por S. Paulo atribuídas à recepção sacrílega da S. Eucaristia (cf. 1Cor 11, 30).
O Senhor Jesus, porém, trouxe nova luz sobre a maneira se ligam entre si pecado e doença. Embora esta seja decorrente daquela, como professa a Revelação desde o livro do Gênesis, não se creia que toda enfermidade provém de culpa pessoal e grave cometida pelo paciente ou seus familiares. A Providência Divina pode permitir que penosas doenças acometam os justos não precisamente para castigá-los, mas em vista de outros fins... Muito claro é o episódio seguinte:
Ao passar, viu Jesus um homem cego de nascença. Perguntaram-lhe então os discípulos: 'Senhor, quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?' Jesus respondeu: 'Nem ele pecou, nem seus pais, mas isso aconteceu a fim de que as obras de Deus nele se manifestem' ",(Jo 9, 1-3)11
E quais as obras de Deus que, conforme Jesus, se manifestam no justo acometido pela doença?
O Senhor poderia dar a autêntica resposta apontando para o otimismo dos gregos que forjaram o mito de Hércules ou do herói aflito; a sabedoria helênica, no caso, é pedagogo para o discípulo de Cristo. Como os gregos julgavam que a doença não é apenas sanção, mas também ocasião de amadurecimento e perfeição para o homem, assim a fé cristã, num plano ainda mais elevado ou sobrenatural, ensina que a moléstia não é unicamente castigo (como se julgava nos primeiros tempos do povo de Israel), obra da Justiça de Deus, mas é outrossim ocasião de exaltação, de redenção para o homem; em outros termos: é também obra do Amor, que decretou salvar e glorificar o homem pela miséria mesma de sua natureza Obra da Justiça e obra do Amor misericordioso de Deus, eis o que se manifesta nas doenças do cristão.
FONTE ELETRÔNICA:
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