Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 397 - Ano 1995 - p. 251
Em síntese: A profecia das setenta semanas de Daniel 9,24-27 é uma das passagens mais obscuras e controvertidas da S. Escritura, pois o texto não somente é conciso e misterioso, mas também está mal conservado, prestando-se consequentemente a variadas interpretações.
Abaixo será examinado o texto como tal. Ao que se seguirá a explanação das duas interpretações mais em voga entre os exegetas. Nenhuma, porém, é plenamente convincente. - Aliás, deve-se levar em conta o fato de que o texto de Dn 9,24-27 está inserido num contexto apocalíptico ou de um gênero literário simbolista, que não é propriamente profético.
Já São Jerônimo, no séc. V, enumerava nove explicações diversas do vaticínio (cf. ln Dn 9,24 ed. Migne lat. 25, 542-553).
F. Fraidl em 1883 enunciava 107 interpretações do texto, propostas todas antes do século XVI; dessas interpretações, 22 eram messiânicas, isto é, referentes a Jesus Cristo. Os exegetas modernos aumentaram esses números; contudo reconhecem abertamente que nenhuma sentença é cabal ou capaz de elucidar plenamente o texto. Em conseqüência, devemos de antemão renunciar a conclusões irreformáveis na nossa exegese de Dn 9,24-27, e contentar-nos com a mais provável das explicações que se possam dar.
Nas considerações que se seguem, procuraremos ser sóbrios, evitando questões sutis, para deter-nos nas grandes linhas e nas expressões mais importantes do texto sagrado. Examinaremos primeiramente a face do trecho a ser analisado; a seguir, percorreremos as duas principais interpretações que têm sido dadas à profecia das setentas semanas, tentando por fim daí deduzir uma conclusão positiva.
O Texto de Dn 9, 24-27
A passagem de Dn 9 nos apresenta o jovem israelita Daniel no fim do exílio de Israel na Babilônia (587-538), ou seja, no fim do ano de 539 ou no início de 538 (é o que eqüivale ao "primeiro ano de Dario Medo" mencionado em Dn 9, 1). Daniel então se lembra da profecia que Jeremias (25, 11-13) proferira em 606, anunciando que o degredo devia durar 70 anos (cifra arredondada, à qual não se deve atribuir precisão matemática). Consequentemente, inflama-se do desejo de ver, quanto antes, terminada a humilhação de Israel, e derrama ardente oração penitente, a fim de impetrar a almejada misericórdia para o seu povo (Dn 9, 3-19). Em resposta a esta prece, o anjo Gabriel é enviado ao jovem orante, a fim de comunicar-lhe o seguinte:
"Um prazo de setenta anos foi fixado
A respeito do teu povo e da tua Cidade Santa,
Para pôr termo ao pecado,
Para dar fim à iniquidade,
Para expiar a culpa,
Para introduzir justiça eterna,
Para selar (= cumprir) visão e profecia,
Para ungir o Santo dos Santos.
Reconhece e compreende:
Desde o momento em que foi emitida a palavra
De restauração e reconstrução de Jerusalém
Até a vinda do Príncipe Ungido,
Transcorrerão sete semanas.
E durante sessenta e duas semanas
Será restabelecida e reconstruída (Jerusalém)
Com sua praça e seu fosso
Mas na angústia dos tempos
E, depois de sessenta e duas semanas,
O Ungido será eliminado
Sem que haja pecado nele.
Então um príncipe que há de vir com seu povo,
Destruirá a cidade e o santuário.
E seu fim se dará no cataclismo (na inundação)!
Até o fim haverá guerras
E os desastres decretados
Ele firmará aliança com muitos
No decorrer de uma semana.
E no meio da semana
Fará cessar o sacrifício e a oblação.
E sobre o santuário haverá a horrível abominação.
Até que a destruição decretada
Se abata sobre o devastador".
A principal dúvida de reconstituição do texto ocorre no v. 25. Poder-se-iam juntar numa só frase as duas indicações: "sete semanas e sessenta e duas semanas" (cancelando-se o "durante" da tradução acima proposta); a Segunda frase então começaria por "será restabelecida e reconstruída...". Contudo esta outra maneira de pontuar não corresponderia ao teor do texto hebraico hoje existente, pois este indica pausa (ou separação de frase, athanah) entre as duas cifras assinaladas (verdade é que os sinais de pontuação não são primitivos nos livros bíblicos, mas foram introduzidos durante a Idade Média segundo o modo de ver dos rabinos ditos "massoretas").
Passemos agora à
Análise do texto de Dn 9, 24-27
Como se vê, o anjo Gabriel queria dizer a Daniel que a aguardada vinda do reino de Deus se daria, sim, ao cabo de setenta períodos, não, porém, setenta anos ou setenta vezes sete anos (ou ainda, ao cabo de quatrocentos e noventa anos).
A profecia de Jeremias vem assim considerada dentro de nova perspectiva: não é relacionada com o fim do exílio babilônico, mas com outra intervenção forte e gloriosa de Deus em favor do seu povo.
Qual seria essa outra intervenção predita para mais tarde?
As respostas dos exegetas variam de acordo com o ponto de partida que tomam para calcular os 490 anos.
Há os que se baseiam no ano de 606, no qual jeremias proferiu o seu oráculo (25, 11-13); chegam então ao séc. II a.C., ou seja, ao tempo dos Macabeus, em que fato Deus se manifestou gloriosamente em defesa do seu povo oprimido. - Há, porém, os que se apoiam em data posterior; podem assim chegar à época de Jesus Cristo, e ver em Dn 9, 24-27 uma profecia diretamente messiânica.
Tal outra interpretação é a mais antiga na Igreja; os escritores e Padres dos primeiros tempos a afirmavam, impressionados pelas expressões de Dn 9,24, que parecem referir a bonança messiânica simplesmente dita; também os guiava a aplicação que Jesus fez de Dn 9, 24-27 a acontecimentos da era messiânica ou à destruição de Jerusalém em 70 d.C. (cf. Mt 24, 15).
Contudo os exegetas mais recentes, atendendo à letra do texto, preferem a primeira interpretação atrás assinalada (interpretação referente à era dos Macabeus).
Vejamos sumariamente como se desenvolve cada uma das duas explicações (note-se que as múltiplas tentativas exegéticas de Dn 9, 24-27 se reduzem finalmente a estas duas; por isto basta-nos levar em conta apenas essas).
A interpretação diretamente messiânica
1. Observe-se, antes do mais, que o decreto ou a palavra de reconstrução de Jerusalém a partir da qual se começam a contar as setentas semanas (cf. Dn 9,25), poderia situar-se em alguma dessas datas:
Na época em que Jeremias proferiu o oráculo de Jr 25, 11, isto é, no ano de 606 a.C.
Na época em que Ciro libertou do cativeiro babilônico os judeus, autorizando-os a reconstruir o templo de Jerusalém, isto é, entre 538 e 535 (cf. Esd 1, 14; 5, 15; 6, 3-5);
Na época em que Dario Histaspe renovou essa autorização aos judeus, isto é, no ano de 520 aproximadamente (cf. Esd 6,6-12);
Na época em que o rei Artaxerxes I (464-424), em seu sétimo ano de reinado, promulgou semelhante permissão, isto é, no ano de 458 (cf. Esd 7, 12-26);
Na época em que o mesmo Artaxerxes I, em seu vigésimo ano de reinado, reiterou essa permissão, isto é, no ano de 445.
Dentre essas diversas possibilidades, certos exegetas escolhem a do ano 458 ou ano sétimo do reinado de Artaxerxes I (as outras datas ou não seriam muito precisas, ou não se referiram propriamente a um decreto de restauração e reconstrução de Jerusalém). Ora, de 458 até a vinda do Príncipe Ungido (= Messias, Cristo), devem transcorrer, conforme Dn 9, 25, sessenta e nove semanas de anos, isto é, 483 anos - o que nos leva até o ano 23 da era cristã. Esta data, porém, não conduz exatamente com a cronologia real da vida de Jesus, que começou a sua vida pública por volta do ano 27 ou de 29/30.
Diante disto, outros exegetas começam a contar os anos do reinado de Artaxerxes I desde que, como dizem, este foi nomeado "co-regente" (companheiro de governo) de Xerxes no regime da Pérsia, isto é, desde 474. Além disto, escolhem como ponto de partida do cálculo o decreto do ano 20 de Artaxerxes I, decreto portanto datado de 445/44. Acrescentando a este termo sessenta e nove semanas de anos (483 anos), chega-se à data de 29/30 da era cristã, data que bem corresponde à do batismo de Jesus¹. - Dado que o Senhor tenha pregado aproximadamente três anos, foi no meio da septuagésima semana que Ele morreu (o que concordaria com os dizeres de Dn 9, 26 e 27).
2. Uma vez feitos estes cálculos, os adeptos da interpretação diretamente messiânica explicam do seguinte modo os sucessivos dizeres do vaticínio:
O texto de Dn 9, 24 seria como que uma visão de conjunto da bonança acarretada pela vinda do Messias. O "Santo dos Santos" a ser ungido significaria Jesus Cristo (cf. At 10, 35).
No v. 25 dever-se-ia fazer a soma das sete e das sessenta e duas semanas aí mencionadas. No decurso deste período (mais precisamente: durante o século V) Jerusalém foi, sim, restaurada e reconstruída, embora em meio a muitas dificuldades, como assevera o texto de Daniel.
O v. 26, falando da extirpação do Ungido, aludiria à morte de Cristo. O príncipe que sobreveio com seu povo, destruindo Jerusalém e o santuário, seria Tito com seu exército, ao qual de fato se deve a ruína de Jerusalém em 70 d.C.
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