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domingo, 6 de fevereiro de 2011

A Moralidade no Antigo Testamento ( II ) - EB Parte 2

Também Davi parece Ter-se deixado arrastar a excesso no episódio relatado em 1Sm 27, 8-11. Certa vez, perseguido por Saul, o futuro monarca de Israel se refugiou nas terras do rei filisteu Aquis, que o recebeu benevolamente; de sua nova mansão, porém, Davi fazia incursões contra populações vizinhas: os amalecitas, que Samuel condenaria ao anátema (cf. 1Sm 15,3); os gessurianos e os gezrianos, que eram provavelmente tribos amalecitas. O grande guerreiro tudo devastava, matando homens e mulheres, roubando gado e vestes. A seguir, voltava à presença do rei Aquís e, temendo controle ou represálias da parte deste, dizia-lhe ter feito expedições na regiões do negeb, regiões que pertenciam à tribo de Judá e a seus aliados. Tais depredações procediam realmente de zelo religioso? E a mentira subsequente que as encobria, poderia ser justificada?

De resto, a Sagrada Escritura fornece indício de que os freqüentes derramamentos de sangue por Davi cometidos não sempre corresponderam ao plano divino; antes, desagradaram ao Senhor. Com efeito, quando o rei de Israel desejou edificar o templo de Javé em Jerusalém, recebeu do Senhor formal recusa, pois, como reconheceu o próprio monarca, não convinha que o templo, santuário da paz, fosse erguido por mãos que haviam feito correr tanto sangue (cf. 1Cr 22, 8-10; 28.3).

5. Era igualmente a necessidade de manter pura a religião de Israel que fazia com que fosse o herém praticado entre os próprios hebreus, caso um ou mais indivíduos caíssem na idolatria ou em outro pecado grave. Tal sanção é prescrita por Moisés em Dt 13, 13-19; foi a aplicação da mesma que motivou a guerra fratricida contra a tribo de Benjamim (Jz 20, 1-48; 21, 1-14). À medida, porém, que se ia elevando o nível cultural e moral de Israel, abrandava-se a praxe do herém entre conacionais; assim na época de Esdras (séc. V/IV), implicava não já a morte do réu, mas a confiscação dos seus bens e a sua exclusão das assembleias do povo (Esd 10,8).

6. Ainda outro elemento deve ser levado em conta para se entenderem devidamente as façanhas bélicas do Antigo Testamento : é a mentalidade do clã ou coletivista. Entre os antigos de modo geral, o indivíduo costumava ser prezado não somente como tal, mas também (e, não raro, preponderantemente) como membro de uma coletividade; dava-se muita importância à solidariedade natural que une todo homem à família, tribo ou nação. Isto se explica, em grande parte, pelo gênero de vida nômade que levavam que os acompanham, e isto (dizem os psicólogos) não pode deixar de imprimir um caráter gregário ou coletivista à vista do clã, fazendo com que o indivíduo como tal desapareça na engrenagem do todo. Ademais na vida nômade é mais difícil que na vida sedentária descobrir o autor de um crime (fora os casos de delito flagrante); por conseguinte, julgava-se muitas vezes na antigüidade que os fatores da história não são "este" e "aquele indivíduo", mas "este" e, "aquele clã".18 Ora este modo de ver implicava que, ao se cometer um crime contra determinado sujeitos, todo o grupo respectivo se julgava atingido; por conseguinte, era a tribo inteira que se levantava para reagir, e reagir não contra o agressor isolado, mas contra a coletividade de que fazia parte o ofensor. É o que explica os freqüentes choques de tribo contra tribo, choques em que nem as mulheres, nem as crianças eram poupadas; é também esse o motivo por que muitas vezes os filhos, netos e ulteriores descendentes da geração criminosa eram por um legislador condenados à maldição.19 A história sagrada apresenta disto um exemplo assaz significativo em 1 Sm 15, 1-3: Samuel manda a Saul que extermine os amalecitas - homens, mulheres, crianças - e todo o seu gado, porque em três ocasiões durante a travessia do deserto, havia já mais de dois séculos, se tinham oposto à passagem do povo de Deus (cf. Êx. 17, 8-13; Nm 14, 45; Jz 3, 13; 6,3): Moisés, em conseqüência, os tinha condenado a completo e extermínio (cf. Dt 25, 17-19; Nm 24,20). Segundo a ordem de Samuel, pois, uma geração bem posterior pagaria pela culpa de antepassados longínquos!20

Aos poucos, porém, Deus quis corrigir também esse modo de ver imperfeito. Acontecia no séc. VI que os judeus, punidos por guerras e deportações, se queixavam de que seus pais haviam comido uvas amargas e os entes dos filhos sofriam em conseqüência (cf. Ez 18, 2; Jr. 31, 29); apoiados em tal tese, dispensavam-se hipocritamente de qualquer propósito de penitência, pois se apregoavam inocentes. Foi então que o Senhor se dignou explicitamente negar a veracidade do pressuposto:

"Eis que todas as almas Me pertencem: a alma do filho como a alma do pai é minha: a alma que pecar, essa morrerá". (Ez 18, 4; cf. Jr 31,30).

Assim mais uma vez se manifestava a paciência divina em lenta tarefa educacional (...)

§ 3º AS IMPRECAÇÕES

Ocorrem no Antigo Testamento, principalmente nos salmos, fórmulas em que o autor sagrado ou outro personagem deseja o mal àqueles que o angustiam. São frases que, à primeira leitura, parecem aptas a ofender a consciência do cristão e pedem um esclarecimento exegético.

Dentre essas fórmulas, não se negará que algumas sejam expressão da paixão desregrada; acham-se simplesmente citadas ou consignadas, como ditos alheios, pelo hagiógrafo, não, porém, aprovadas nem propostas pelo Espírito Santo qual modelo de sentimentos do homem de Deus. O contexto indica quais sejam tais imprecações pecaminosas (cf., por exemplo, 1Sm 22, 16; Sl 39, 16; 40, 6-10).

Muitas, porém, das imprecações do Antigo Testamento, mormente do saltério, não são de modo nenhum condenáveis; têm significado bom, até hoje válido.

Para entendê-las, será preciso considerar que procedem de um ânimo intimamente unido a Deus, (...) por mais estranho que isto pareça. Em verdade os autores sagrados, ao pleitear sua causa perante o Senhor, não o costumavam fazer a título pessoal, reivindicando direitos particulares, próprios, mas advogavam os interesses do bem, da justiça ou da verdadeira religião; por conseguinte, explícita ou implicitamente a sua causa se identificava com a de Deus, e os seus inimigos vinham a ser os adversários do próprio Deus.21 Assim entendida a situação, não podiam ver motivo para abrandar o rigor dos termos com que os antigos orientais, dotados de ânimo férvido costumavam pedir a extirpação dos adversários; não pode haver compatibilidade entre o bem e o mal, o reino de Deus e o do pecado; a toda instituição que se opõe a Deus, o homem justo não pode deixar de desejar completa ruína.

Isto mais ainda se compreende se se leva em conta que os hagiógrafos não costumavam fazer distinção explícita entre a pessoa que praticava o mal e o mal por ela cometido; já que, na realidade cotidiana, a injúria se nos depara geralmente associada a determinado indivíduo que lhe dá origem, o autor sagrado, desejando a extinção das injúrias (o que em si é coisa ótima), envolvia na sua fórmula imprecatória a pessoa mesma injuriante (o que não quer dizer que desejasse mal a esta como tal). É dessa situação psicológica que resulta o modo de falar surpreendente das imprecações bíblicas.

Quanto aos termos com que se acham formuladas, convém frisar que pertencem ao vocabulário oriental, tendente às hipérboles à ênfase. São muitas vezes tirados diretamente da linguagem militar ou do direito de guerra de outrora. É o que dá tanta vivacidade - dir-se-ia mesmo: crueldade - às frases imprecatórias. Para se perceber a verdadeiramente do autor sagrado, será preciso descontar o que tais fórmulas possam ter de hiperbólico e convencional.

À luz destas considerações, o leitor da Bíblia verá nas imprecações (em particular, nos salmos imprecatórios) a expressão do desejo de que justiça seja feita, os abusos coibidos; entendê-las-á como fórmulas dirigidas contra os males e o Mal, não contra os maus; transportar-se-á, em suma, para um plano todo impessoal.

Para o cristão, pois, mesmo as imprecações mais veementes do saltério tomam valor cristão. Não há dúvida, o discípulo de Jesus tem por lei "amar os inimigos, orar pelos que o perseguem" (cf. Mt 5, 39,44). Sem, porém, derrogar ao amor dos homens, ele pode, e deve, devotar ódio ao pecado e ao reino de Satanás; deve desejar a extirpação completa deste potentado e dos seus baluartes, baluartes que, em parte, são as tendências desregradas da própria natureza humana, em parte são tudo que há de mal disseminado em torno de nós. Que o cristão, pois, reze os salmos imprecatórios, tendo em vista os vícios e as instituições hodiermas inimigas do reino de Cristo, todas as instituições e seitas que se esforçam por disseminar o erro e o pecado no mundo. E contra tais esteios do mal não hesitará em proferir os salmos imprecatórios, do íntimo do coração, com a plenitude do seu amor para com Deus e o próximo.

§ 4º POLIGAMIA, DIVÓRCIO E INCESTO

Poligamia

O matrimônio, quando pela primeira vez aparece na história sagrada, é união monogâmica; o Criador mesmo o instituiu e abençoou, subtraindo-o ao plano de simples função da natureza para lhe dar valor religioso (cf. Gn, 1, 28; 2, 23s). Por isto, o contrato entre marido e esposa é, nos livros posteriores da Sagrada Escritura, chamado "aliança de Deus" (Pr 2,17), aliança "da qual o Senhor é testemunha" (cf. Ml 2,14).22

Visto ser "aliança de Deus", o matrimônio - e, note-se bem, o matrimônio monogâmico - é, principalmente nos escritos dos Profetas, apresentado como figura da união de Deus - que faz as vezes de Esposo - com seu povo - que se comporta como esposa. Vejam-se Os 1,2;2, 21.s; 3,3; Is 50, 1; 54, 5s.; 62, 5; Jr 2,2; 3, 1-4.23 O livro que por excelência apregoa a santidade da vida conjugal, o livro de Tobias, se refere ao contrato de um jovem com uma donzela (Sara).

O primeiro caso de bigamia que a Sagrada Escritura registrada verifica-se na família de Lameque (cf. Gn 4,19). Este é o sexto membro da linhagem de Caim, caracterizada pela corrupção (o que já por si torna suspeita a novidade dos matrimônios de Lameque). Ora, referindo o episódio, o hagiógrafo indiretamente condena o bígamo, pois frisa a índole sanguinária e vingativa que o Patriarca manifesta em versos às duas esposas:

"Adá e Selá, ouvi minha voz,

Mulheres de Lameque, escutai minha palavra;

Matei um homem em troca de um ferimento recebido,

E um jovem em compensação de uma contusão.

Caim será vingado sete vezes,

Lameque, porém, setenta e sete vezes". (Gn 4, 23s)





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