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segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O Cânon de Jâmnia parte 2

Ora, ele está dizendo que nada foi alterado nos textos presentes nestes livros, nenhuma sílaba a mais, nenhuma a menos. Josefo não está se referindo à adição ou retirada de livros a um conjunto pré-estabelecido de outros livros.
A tese do Cânon pré-existente apresenta sérios problemas. Primeiro, se este suposto cânon correspondia ao Cânon de Jâmnia, por que era comumente usada a Septuaginta com um catálogo bem maior, conforme é comprovado pelo testemunho do NT e as descobertas do Mar Morto e Massada?
Segundo, se este suposto cânon correspondesse aos livros da Septuaginta, logo não seria permitida a definição de qualquer outro cânon bíblico; então por que foi estabelecido o Cânon de Jâmnia?
Terceiro, os judeus alexandrinos e etíopes recusaram o Cânon de Jâmnia e até hoje guardam como sagrados os livros da Septuaginta. Se realmente este suposto cânon bíblico existisse, não haveria disputas entre os judeus sobre este tema; todos adotariam o mesmo conjunto de livros sagrados definidos pela Tradição Judaica.
Fílon de Alexandria, historiador e filósofo judeu, viveu entre os anos de 20 a 50 d.C. Em sua obra “Exposições sobre a Lei”, onde faz comentários sobre a doutrina da Torah (20), as referências ao Pentateuco são todas da Septuaginta, que possuía os livros deuterocanônicos e as partes deuterocanônicas de Daniel e Ester, não aceitas posteriormente pelos Judeus de Jâmnia.
Um dos especialistas sobre a vida de Fílon de Alexandria, o Prof. Ritter, quanto ao uso da Septuaginta pelo filósofo escreve:
A princípio o texto que ele [Fílon] comenta é o da tradução grega dos Setenta; algumas diferenças que se assinalou com razão entre seu texto e aquele que possuímos atualmente dos Setenta se explicam de uma maneira satisfatória não pela leitura do texto hebraico, mas pelo fato de que nossa recensão é de origem posterior à da que ele usava” (RITTER, 1979).
Antes que alguém objete afirmando que a Tradição dos judeus palestinenses era diferente da Tradição dos judeus alexandrinos, devo lembrá-los que ambos os grupos manuseavam a versão grega da Septuaginta, portanto, possuíam a mesma Tradição Judaica.
A correspondência entre a Tradição Judaica Alexandrina e a Palestina é atestada pelo estudioso Wolfson:
O judaísmo alexandrino, no tempo de Fílon, era do mesmo tronco do judaísmo farisaico, que então prosperava na Palestina, ambos tendo brotado daquele judaísmo macabeu [c. 165 a.C.] que fora moldado pelas atividades dos escribas” (WOLFSON, 1982).
Ainda segundo o estudioso Werner Jaeger:
O grego era falado nas synagogai (21) por todo o Mediterrâneo, como se torna evidente pelo exemplo de Fílon de Alexandria, que não escreveu o seu grego literário para um público de gentios, mas para os seus compatriotas judeus altamente educados” (JAEGER, 1991).
Fílon de Alexandria, falava grego como era costume em seu tempo e utilizava as escrituras hebraicas através da Septuaginta. Isto era muito comum até entre os judeus da Palestina. Josefo defende os judeus de Alexandria de diversas calúnias, mostrando haver identidade entre eles e os judeus da palestina (JOSEFO, 2006, p. 96-102).
Se o cânon das Escrituras Hebraicas já estivesse fechado no tempo de Jesus, todos os judeus hoje (palestinos ou alexandrinos) observariam o mesmo conjunto de livros sagrados, e os fariseus de Jâmnia não precisariam se preocupar com isto no final do séc. I d.C.
Interessante é a constatação do estudioso Fedeli Pasquero:
Na realidade, seguramente os judeus alexandrino no séc. I d.C. reconheciam como sagrados os livros deuterocanônicos [do AT]; não obstante a isso, eles estavam em plena comunhão de fé com os judeus da Palestina, coisa que não teria sido possível se houvesse divergências em relação aos livros sagrados. Com efeito, os doutores hebreus faziam uso de pelo menos alguns dos livros deuterocanônicos [do AT]; de modo especial, encontramos frequentemente citados Baruc, o Sirácida [Sabedoria de Siarc ou Eclesiástico], Tobias” (PASQUERO, 1986).
Sobre a possibilidade de um cânon de Escrituras hebraicas pré-definido, assim se manifesta Rost:
[...] não havia um cânon oficial, ou, como diz a Mixná Yaddyim IV 6, não havia Ktby qds’, Escrituras sagradas, como grupo fechado. Mesmo na época em que se fixou a Mixná, por volta de 100 d.C., reinava ampla discussão entre os eruditos a respeito de saber se o Cântico dos Cântico ou o Eclesiastes de Salomão (Qohelet) faziam ou não parte do grupo, discussão esta que foi aplainada por uma sentença arbitral em favor da inclusão destes livros entre os escritos sagrados (Mixná Yadvim III 5 cd). As descobertas dos manuscritos do Mar Morto, provenientes do período que vai de 150 antes de Cristo até 70 da era cristã, em particular os que foram encontrados nas cavernas de Qumran, mostram-nos claramente que naquela época ainda não havia uma distinção rigorosa entre Escritura sagrada e menos sagrada [...] Mas o fato de um fragmento bastante extenso do Sirac hebraico, copiado em escrita esticométrica, vale dizer, executado com capricho e dispêndio de tempo, constituir um dos poucos restos de manuscritos descobertos em Masada, é prova da estiva que este escrito desfrutava no círculo dos zelotes, no correr do século I d.C” (ROST, 1980, p.13-14).
Durante a formação do Cânon Hebreu, alguns rabinos se opuseram também à inclusão do livro de Ester, conforme atesta o Prof. Samuel Sandmel (22):
O livro de Ester, segundo os antigos rabinos, é o livro mais novo da Escritura. Houve, entre estes rabinos, quem não quisesse que ele fosse incluído na Escritura” (BIBLIA, 1974, Introduções Aos Livros Históricos, verb. Ester, xxiii).
Ainda conforme o Prof. Sandmel, a tradição rabínica quase excluiu do Cânon das Escritura Hebraicas, o livro do Profeta Ezequiel:
O livro de Ezequiel foi julgado desapropriado para o cânon porque regulações dos capítulos 40 – 48 parecem contradizer regulações similares do Pentateuco. Como o sábio rabínico Hananias ben Ezequias foi capaz de resolver estas contradições com uma apurada interpretação, o livro salvou-se de ser abandonado juntamente com outros livros que não podiam circular publicamente” (Ibid.; Introduções Aos Livros Proféticos, xliii).
Além destes, também foram inicialmente contestados pelos rabinos, Jó (Ibid., xvii), Provérbios, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes (Ibid., xxxi), concordando assim com o parecer de Rost.
Tudo isto mostra que realmente houve em Jâmnia um acordo entre os fariseus sobre os livros que deveriam ser considerados canônicos pelos judeus. Note o leitor que alguns livros do AT considerados canônicos por todos os cristãos, quase ficaram fora do Cânon Hebreu; livros estes que foram amplamente usados pelos antigos judeus. E se tivessem sido excluídos do Cânon Hebreu, isto significaria que jamais foram considerados canônicos antes? E os livros que os fariseus rejeitaram [os deuterocanônicos], será mesmo que não eram canônicos?

Notas
(16) Alguns autores identificam a Escola Rabínica em Jâmnia como o antigo Sinédrio (BERARDINO, 2002, verb. Jerusalém, p. 750). Entretanto há controvérsias entre os especialistas, já que o Sinédrio era predominantemente formado por Saduceus, que neste tempo foram desimados.
(17) Os judeus organizavam suas Escrituras conforme o número de letras de seu alfabeto.
(18) Na tradução original está Artajerjes (“j” no lugar do “x”), o que difere do uso comum em outras traduções. Por motivo de unidade textual mantive conforme o uso comum.
(19) Mesma razão da nota anterior.
(20) É como os Judeus chamam a Lei de Moisés.
(21) Sinagogas, onde os judeus se reuniam para o estudo das Sagradas Escrituras.
(22) Prof. de Bíblia e Literatura Helenística na Hebrew Union College, Cincinnati, Ohio - EUA.
Bibliografia
JOSEFO, Flávio. Antiguidades dos Judeus - Contra Apion. 1ª. Ed. Tradução de A. C Godoy. Curitiba: Juruá, 2006.

ROST, Leonard. Introdução aos Livros Apócrifos e Pseudo-Epígrafos do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1980.

RITTER, B. Philo und die Halacha, eine vergleichende Studie unter steter Berücksichtigung des Joseph, Leipzig, 1879.

PASQUERO, Fedele. O Mundo da Bíblia, Autores Vários. São Paulo: Paulinas, 1986.

BIBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueiredo. Edição Ecumênica, 1974.
Este artigo é fragmento da obra "O Cânon Bíblico - A Origem da Lista dos Livros Sagrados" de autoria de Alessandro Lima*, Ed. ComDeus, 2007. São Paulo. Pgs 27-34.
* O autor é arquiteto de software, professor, escritor, articulista e fundador do Apostolado Veritatis Splendor.

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