Em síntese: O presente artigo aborda o livro do Apocalipse de São João, que não deve ser tido como fonte de argumentos em prol de iminente fim do mundo. O núcleo do livro dispõe-se em três septenários, que recapitulam toda a história da humanidade e da Igreja sob forma simbolista, mostrando que as calamidades de toda e qualquer época estão englobadas num plano sábio de Deus. Este dirá a última palavra da história; todavia o livro não permite calcular a data da consumação dos tempos ou da segunda vinda de Cristo. O Apocalipse é um livro de reconforto e esperança, e não um livro de apavoramento. Há de ser lido dentro dos parâmetros do respectivo gênero literário apocalíptico, que tem seu estilo e seu linguajar próprios. Quem não leva em conta tais peculiaridades, corre o risco de deduzir do texto sagrado o que ele não quer dizer.
O Apocalipse, com seus símbolos e suas cenas aterradoras, presta-se à tentativa de se calcular a data do fim do mundo e das calamidades que, como se crê, o devem preceder. Visto que a interpretação do livro não é fácil, pois requer critérios precisos deduzidos do próprio gênero literário apocalíptico, vamos, a seguir, apresentar o problema suscitado pelo livro e a solução mais plausível para o mesmo.
Dividiremos a nossa exposição em cinco partes: I. Que é um Apocalipse?; II. O contexto histórico do Apocalipse de São João; III. A interpretação do Apocalipse; IV. Questões especiais; V. Conclusão.
Que é um Apocalipse?
A palavra grega apokálypsis quer dizer revelação. O gênero literário das revelações (ou apocalíptico) teve grande voga entre os judeus nos dois séculos imediatamente anteriores e posteriores a Cristo. A sua origem se deve principalmente ao fato de que os autênticos profetas foram escasseando em Israel após o exílio babilônico (587-538 a.C.); os últimos profetas bíblicos – Ageu, Malaquias e Zacarias – exerceram o seu ministério nos séculos VI e V a.C.
Ora após o séc. V o povo de Israel continuou sujeito ao jugo estrangeiro: retornando do exílio babilônico em 538 a.C., ficou o domínio persa até Alexandre Magno (336-323 a.C.) da Macedônia, que conquistou a terra de Israel, anexando-a ao Império Macedônico. Após a morte do imperador, a Palestina ficou sob os egípcios (dinastia dos Ptolomeus) até o ano de 200 a.C. Nesta data, os sírios ocuparam e dominaram a terra de Israel, constituindo aí o período dos Antíocos ou Selêucidas. Finalmente, os Romanos em 63 a.C. invadiram o território palestinense e impuseram seu jugo aos judeus, jugo que perdurou até que o povo de Israel foi expulso da sua terra em 70 d.C. (queda e ruína de Jerusalém revoltada). Ora nessas duras circunstâncias de vida o povo de Israel, não tendo profeta, sentia necessidade de ser consolado e alentado para não desfalecer. Foi então que os autores judeus se puseram a cultivar mais assiduamente o gênero literário apocalíptico ou da revelação, que tem afinidade com a profecia, mas, na verdade, não se identifica com esta.
O Apocalipse (revelação) tende a incutir aos leitores uma confiança inabalável na Providência Divina. Todavia, em vez de o fazer de maneira escolar ou meramente teórica, exortando à fé, o autor recorre a um artifício: atribui a um famoso personagem bíblico do passado (Enoque, Moisés, Elias, Daniel) ou a um anjo do Senhor revelações proféticas a respeito da época que ele e seus correligionários estão vivendo. Esse personagem famoso antigo descreve os tempos atribulados que os leitos experimentam e assegura que a tormenta passará, devendo a causa de Deus triunfar da facção dos ímpios; estes serão prostrados, pois ocorrerão em breve o juízo final da história e a consumação dos tempos. É isto que dá ao apocalipse a aparência de profecia; todavia note-se que o autor, ao descrever os fatos de sua época (como se tivessem sido preditos por Enoque ou Moisés…), os descreve na base de suas observações e experiências pessoais. O recurso a personagem famoso da antigüidade como revelador da mensagem é artifício próprio do gênero apocalíptico: tende a incutir mais ânimo e esperança nos leitores; com efeito, se o próprio autor sagrado, contemporâneo dos leitores imediatos, predissesse dias melhores, não teria a mesma autoridade que era inegavelmente reconhecida a Enoque, Moisés, Elias, Daniel… Por sua vez, o escritor sagrado tinha fundamentos para consolar seus companheiros perseguidos e predizer a vitória final do bem sobre o mal, porque esta é anunciada por todas as profecias e promessas feitas a Israel. O autor de um apocalipse nada acrescenta de novo a essas promessas; apenas as torna atuais, repetindo-as de maneira solene e enfática em momento penoso do história do seu povo e anunciando para breve o cumprimento das mesmas. De resto, a Salvação, já oferecida por Deus em fases anteriores de tribulações de Israel, era penhor de que, também dessa vez, o Senhor não abandonaria seu povo.
As páginas mais tipicamente apocalípticas do Antigo Testamento são os capítulos 7 a 12 do livro de Daniel. Estas secções foram escritas no séc. II sob o domínio dos sírios ou Antíocos na Palestina; atribuem a Daniel, famoso varão do séc. VI, a descrição simbolista dos acontecimentos que se desenrolam desde o domínio persa (séc. VI a.C.) até o domínio sírio (séc. II a.C.); em estilo de sonhos que imperaram sobre Israel até Antíoco IV Epifânio (175-164); para os tempos deste, o autor apocalíptico anuncia a intervenção final de Deus e salvação a ser trazida pelo Messias. Não é fácil entender um apocalipse, visto que utiliza exuberante simbolismo e coloca o leitor diante de um cenário cósmico, que conjuga o céu e a terra.
Mais precisamente, podem-se assim caracterizar os elementos formais do gênero apocalíptico.
1) A pseudonímia do autor. Este é um contemporâneo dos seus primeiros leitores, mas fala-lhes como se fosse um personagem antigo e venerável. É o que se vê claramente, por exemplo, no livro de Daniel. No Apocalipse de São João é um anjo que revela.
2) O caráter esotérico (ou reservado) das revelações. Estas terão sido comunicadas outrora ao venerável personagem da antigüidade; deviam, porém. Ficar em segredo até os dias do autor do apocalipse. Veja-se, por exemplo, Dn 8, 26; 12, 9.
3) Frequentes intervenções de anjos. Estes aparecem, nos apocalipses, ora como ministros de Deus que colaboram com a Providência Divina na dispensação da salvação aos homens, ora como intérpretes das visões ou revelações que o autor do livro descreve. Cf. Ez 40,3; Zc 2,1s; 2,5-9; 5,1-4; 6, 1-8; Ap 7, 1-3; 8, 1-13.
4) Simbolismo rico e, por vezes, singular. Animais podem significar homens e povos; feras e aves representam geralmente as nações pagãs; os anjos bons são descritos como se fossem homens, e os maus como estrelas caídas. O recurso aos números é freqüente, explorando-se então o simbolismo dos mesmos (3, 7, 10, 12, 1000 como símbolos de bonança; 31/2 (como símbolo de penúria e tribulação). É a exuberância do simbolismo dos apocalipses que torna difícil a compreensão dos homens; o leitor ou intérprete deve procurar entender esse simbolismo a partir de passagens bíblicas e extra-bíblicas paralelas (na verdade, há símbolos que se repetem com a mesma significação: gafanhotos, águias, cedro, três anos e mui, mil anos…).
Os autores de apocalipses são assaz livres ao conceber seus símbolos, suas visões e personificações; propõem cenas estranhas sem se preocupar com a sua verossimilhança; cf., por exemplo, a Jerusalém nova em Ap 21, 1-27; Ez 47, 1-12.
5) Forte nota escatológica. Os apocalipses se voltam todos para os tempos finais da história e os descrevem com grandiosidade, apresentando a intervenção solene de Deus em meio a um cenário cósmico, o julgamento dos povos, o abalo da natureza, a punição dos maus e a exaltação dos bons (estando reservado para Israel nesse contexto um papel de relevo e recompensa).
Este traço diferencia bem da profecia o apocalipse. A profecia é sempre uma palavra dita em nome de Deus (propheemi = dizer em lugar de); todavia nem sempre visa ao futuro; refere-se muitas vezes a situações do presente, procurando sacudir os homens de sua indiferença religiosa ou da hipocrisia de vida, levando-os a conduta moral mais digna e correta; a profecia tem, sim, um caráter fortemente moralizante, válido para os contemporâneos, mas nem sempre voltado para o futuro ou a escatologia. – Ao contrário, nos apocalipses a índole moralizante desaparece quase por completo; o que preocupa o autor sagrado são os acontecimentos finais da história, que redundarão em derrota definitiva dos maus e prêmio para os bons; as visões, os sonhos e os símbolos fantasistas (que já os profetas cultivavam, mas com sobriedade) tornam-se o elemento dominante na forma literária dos apocalipses.
6) O gênero literário apocalíptico foi-se formando, com suas diversas características, através dos séculos ou paulatinamente. Já se encontram alguns de seus elementos nos escritos dos profetas, antes do séc. II a.C. Há mesmo passagens de profetas que têm estilo apocalíptico, como pode haver nos escritos apocalípticos trechos de índole profética. Assim no livro de Daniel são tidas como proféticas as passagens de Dn 2, 34. 44s; 7, 9-14; 12, 1-3.
Circunstâncias de origem do Apocalipse de São João
1. No fim do séc. I tornava-se cada vez mais penosa a situação dos cristãos disseminados no Império Romano.
Em verdade, o Senhor Jesus deixou este mundo, intimando aos discípulos aguardassem a sua volta gloriosa; não lhes quis indicar, porém, nem o dia nem a hora de sua vinda, pois esta deveria ser tida como a de um ladrão que aparece imprevistamente à meia-noite (cf. Mt 24, 43; 1Ts 5,2s); vigiassem, pois e orassem em santa expectativa. Todavia, apesar da sobriedade das palavras de Jesus, os discípulos esperavam que a sua vinda se desse em breve, enquanto ainda vivesse a geração dos Apóstolos mesmos. À medida, porém, que se passavam os decênios, essa esperança se dissipava; a não poucos parecia que Cristo havia esquecido a sua Igreja e que vão era crer no Evangelho.
A situação se tornara ainda mais angustiosa desde que Nero, em 64, desencadeara a primeira perseguição violenta contra os cristãos. “Ser discípulo de Cristo” equivalia, daquela ocasião em diante, a ser tido como “inimigo do gênero humano”: manifestava-se cada vez mais a oposição entre mentalidade cristã e mentalidade pagã, de modo que, vivendo em plena sociedade pagã, os cristãos tinham não raro que se abster das festas de família, das celebrações cívicas, dos jogos públicos, até mesmo de certas profissões e ramos de negócio (pois através de todos esses meios se exprimia a mentalidade politeísta e supersticiosa reinante).
Em particular, na Ásia Menor o ambiente era carregado de maus presságios: lá ia tomando proporções cada vez mais avultadas o culto dos Imperadores, a ponto de se tornar a pedra de toque da fidelidade de um cidadão romano à pátria.
Desde 195 a.C. a cidade de Esmirna possuía um templo consagrado à deusa Roma; em 26 d.C. os esmirnenses ergueram outro santuário em honra de Tibério, Lívio e do Senado.
Em Pérgamo, desde 29 a.C., fora instituído o culto do Imperador.
A cidade de Éfeso, nos inícios do reinado de Augusto, construíra um altar dedicado a este soberano no recinto do “Artemision” ou templo de Diana.
Os habitantes da Ásia Menor era especialmente inclinados a tal forma de culto, pois se sentiam altamente beneficiados pelos governantes de Roma, que haviam posto termo às guerras civis na região, assegurando à população prosperidade na indústria, no comércio e na cultura em geral.
Ademais outro perigo para o Cristianismo se fazia notar na Ásia Menor em fins do séc. I. A gente dessa região era dotada de exuberante alma religiosa, de sorte que dava acolhida não somente às religiões tradicionais do Império e ao Cristianismo, mas também a formas de culto ditas “dos mistérios” (de Mitra, Cibele, Apolo…), recém-trazidas do Oriente. Tais mistérios fascinavam pela sua índole secreta e por sua promessa de divinização.
Esse estado de coisas permite tirar a seguinte conclusão: Ásia Menor uma religião que, como o Cristianismo, professasse rigorosamente um Deus único e transcendente manifestado por um só Salvador, Jesus, devia necessariamente defrontar-se em breve com formidável aliança de todas as forças do paganismo: sistemas religiosos, interesses políticos, planos econômicos deviam armar-se num combate unânime e cerrado contra o monoteísmo cristão; ser discípulo de Cristo, em tais circunstâncias, significaria sofrer o ódio e o boicote geral de parentes, amigos e concidadãos não cristãos, de tal modo que até mesmo na vida cotidiana do lar o cristão se sentiria sufocado por causa de sua fé.
A situação sugeria a não poucos discípulos de Jesus ou a apostasia em relação ao Divino Mestre ou uma espécie de pacto com as idéias do paganismo, de sorte a dar origem ao sincretismo religioso (caracterizado principalmente pelo dualismo ou o repúdio à matéria que a mística oriental muito propalava). Foi em tais circunstâncias sombrias que São João quis escrever o Apocalipse.
A finalidade do livro torna-se assim evidente.
O autor sagrado visava, acima de tudo, a alentar nos seus fiéis a coragem depauperada; o Apocalipse, em conseqüência, é essencialmente o livro da esperança cristã ou da confiança inabalável no Senhor Jesus e nas suas promessas de vitória.
Pergunta-se então: como terá São João procurado levantar o ânimo e corroborar a esperança dos leitores? Haverá, em nome de Deus, prometido dias melhores aqui na terra em recompensa na fidelidade a Cristo, de maneira que quem fosse hostilizado por causa do Senhor Jesus viria a ser estimado pelos concidadãos e acariciado por prósperas condições de vida temporal (economia feliz, saúde, sucesso nos empreendimentos…)?
A Interpretação do Apocalipse
Como se compreende, grande é o número de sistemas que tentam interpretar o Apocalipse. Todos concordam sobre o sentido geral do livro, que quer anunciar a vitória do Bem sobre o mal, do reino de Cristo sobre as maquinações dos pecadores. Divergem, porém, quando tentam indicar a época precisa em que o Apocalipse situa essa vitória. As diversas teorias se agrupam sob os títulos seguintes:
1) Sistema dito “escatológico” ou do fim dos tempos: São João estaria descrevendo os embates finais da história. Esta interpretação esteve em voga na antiguidade; foi posta de lado na Idade Média; do século XVI aos nossos dias é mais e mais prestigiada principalmente por parte de correntes que profetizam o fim do mundo para breve;
2) Sistema da história antiga (do século I aos séculos IV/V): o Apocalipse descreveria a luta do judaísmo e do paganismo contra os discípulos de Cristo, luta que terminou com a queda da Roma pagã (476) e o triunfo do Cristianismo;
3) Sistema da história universal: o Apocalipse apresentaria, sob a forma de símbolos, uma visão completa de toda a história do Cristianismo: descreveria sucessivamente os principais episódios de cada época e do fim do mundo.
Todas estas interpretações são, do algum modo, falhas, pois não levam em conta suficiente o estilo próprio do livro e querem deduzir do Apocalipse notícias que satisfaçam aos anseios de concreto ou mesmo à curiosidade do leitos. Por isto, deixando-as de lado, proporemos a teoria da recapitulação, que tem seu grande mestre no Pe. E. -B. Allo O.P., professor da Universidade de Friburgo (Suíça) e autor do livro: Saint Jean. L’Apocalypse. Paris, 1933 (4ª edição)¹. Examinaremos essa teoria.
A Recapitulação
Antes do mais, é necessário observar que nem todo o livro do Apocalipse está redigido em estilo apocalíptico. Compreende duas partes anunciadas em Ap 1,19:
1, 4-3,22: as coisas que são (revisão da vida das sete comunidades da Ásia Menor às quais São João escreve); o estilo é sapiencial e pastoral;
4, 1-22, 15: as coisas que devem acontecer depois. Esta é a parte apocalíptica propriamente dita, para a qual se volta a nossa atenção. Observemos a estrutura dessa parte:
4, 1-5, 14: a corte celeste, com sua liturgia. O Cordeiro “de pé”, como que imolado” (5,6), recebe em suas mãos o livro da história da humanidade. Tudo o que acontece no mundo está sob o domínio desse Senhor, que é o Rei dos séculos. – Notemos assim que a parte apocalíptica do livro se abre com uma grandiosa cena de paz e segurança; qualquer quadro de desgraça posterior está subordinado a essa intuição inicial.
O corpo do livro, que se segue, compreende três septenários:
6, 1-8, 1: os sete selos
8, 2-11, 18: as sete trombetas
15, 5-16, 21: as sete taças.
Reflitamos sobre este núcleo central (de sentido decisivo) do Apocalipse.
Pergunta-se: uma estrutura tão artificiosamente construída poderá ainda ser o reflexo imediato da história tal como ela é vivida pelos homens? Não seria, antes, o fruto de um arranjo lógico ou do trabalho de um espírito que reflete sobre os acontecimentos e procura discernir alguns fios condutores por debaixo das diversas ocorrências da vida cotidiana? Sabemos que o estilo de São João é comparado ao voo de uma águia que gira em torno do objeto contemplado até finalmente dar o boto ou dizer claramente o que quer. Levando em conta esta peculiaridade de estilo, podemos dizer que o autor sagrado não expõe os sucessivos acontecimentos concretos da história do Cristianismo, mas apresenta a realidade invisível que se vai afirmando constantemente por detrás dos episódios visíveis da história. Em outros termos: o Apocalipse apresenta (sob forma de símbolos) a luta entre Cristo e Satanás, luta que é o fundo e a coluna dorsal de toda a história. Cada septenário (o dos selos, o das trombetas e o das taças) é conseqüentemente uma peça literária completa em si mesma; o número 7, aliás, significa plenitude ou totalidade, segundo a mística dos antigos.
Apocalipse: Interpretação – Parte 2
Desenho
A seguir, de 17, 1 a 22, 15, ou seja, após os três septenários, ocorre a queda dos agentes do mal:
17, 1-19, 10: a queda da Babilônia da Roma pagã);
19, 11-21: a queda das duas bestas que regem Babilônia (o poder imperial pagão e a religião oficial do império);
20, 1-15: a queda do Dragão, supremo instigador do mal.
Em contra-parte, a secção final (21, 1-22, 15) mostra a Jerusalém celeste, Esposa do Cordeiro e antítese da Babilônia pervertida.
Os vv. 22, 16-21 constituem o epílogo do livro.
Aprofundemos um pouco mais o sentido do tríplice septenário central do Apocalipse.
O primeiro, o dos selos (6, 1-8, 1) nos dá a ver a paulatina abertura do livro que está nas mãos do Cordeiro. É o septenário mais sóbrio e nítido, que, pode-se dizer, resume o livro inteiro; examinemo-lo de perto:
- o primeiro selo corresponde a “um cavalo branco, cujo montador tinha um arco. Deram-lhe uma coroa e ele partiu vencedor e para vencer ainda” (5,2). O cavalo branco reaparece em 19, 11-16; seu montador é o Senhor dos Senhores e o Rei dos Reis (19, 16). – Conseqüentemente dizemos que o primeiro septenário se abre com uma figura alvissareira: a do Verbo de Deus ou Evangelho que, vencedor (porque já propagado no mundo), se dispõe a mais ainda se difundir. Sobre este pano de fundo vêm os três flagelos clássicos da história:
- o segundo selo corresponde ao cavalo vermelho, símbolo da guerra (6,3s);
- o terceiro selo é o do cavalo negro, símbolo da fome negra e da carestia que a guerra acarreta (6,5s);
o quarto selo é o do cavalo esverdeado, símbolo da peste e da morte decorrentes da guerra e da fome (6,7s).
Aí estão os três flagelos que afligem os homens em todos os tempos e que a Bíblia freqüentemente menciona; cf. Lv 26, 23-29; Dt 32, 24s; Ez 5, 17; 6, 11-12; 7, 15; 12, 16.
Depois disto, o quinto selo apresenta os mártires no céu pedindo a Deus justiça para a terra ou o fim da desordem que campeia no mundo. Reproduzem o clamor dos justos de todos os tempos, ansiosos de que termine a inversão dos valores na história da humanidade. Em resposta, é-lhes dito que tenham paciência e aguardem que se complete o número dos habitantes da Jerusalém celeste; cf. 6, 9-11.
O sexto selo já nos põe em presença do desfecho da história: chegou o Grande Dia do juízo final (6,17). Aparecem então os justos na bem-aventurança celeste: os judeus representados por 144.000 assinalados, e os provenientes do paganismo, a constituir “uma multidão inumerável de todas as nações, tribos, povos e línguas” (7,9); celebram a liturgia celeste. – Aqui se encerra propriamente o primeiro septenário; compreende em suas grandes linhas os aspectos aflitivos da história da humanidade e o anseio dos justos para que a ordem se restabeleça; a consumação da história é, para os fiéis, vitória e felicidade. A consolação que São João quer transmitir aos seus leitores, consiste precisamente em mostrar que as calamidades sob as quais os homens gemem, estão envolvidas num plano sábio de Deus, onde todos os males estão dimensionados para que sirvam à salvação das criaturas e à glória do Criador. Eis aí a síntese do Apocalipse apresentada com clareza no primeiro septenário.
E o sétimo selo (8,1)? – Corresponde a um silêncio de meia-hora. Sim, o livro se abriu por completo. O vidente espera execução dos desígnios de Deus contidos no livro aberto. Este silêncio de meia-hora é o “gancho” do qual pende o segundo septenário.
O segundo e o terceiro septenários (8, 2-11, 18 e 15, 5-16,21) retomam o conteúdo do primeiro com algumas variantes. Observemos, para começar, que terminam cada qual com a consumação da história (sétima trombeta em 11, 14-18 e sétima taça em 16, 17-21). O segundo septenário tem em vista principalmente os flagelos que afligem o mundo profano: a terra, a vegetação, as águas, os astros … Ao contrário, o terceiro septenário tem em mira as sortes da Igreja perseguida pelo Dragão (Satanás) e seus dois agentes (o poder imperial pagão, que manipula a religião oficial do Estado pagão).
Observemos dentro do segundo septenário o “gancho” do qual pende o terceiro septenário: em Ap 10, 8-11 e entregue a João um livrinho, doce na boca e amargo no estômago. Como entender isto ? – O segundo septenário, apresenta a execução do plano de Deus contido no livro cujos selos se abriram. Portanto, se deve haver outra série de revelações, deve haver também outro livro que as traga; é precisamente este que João recebe em 10, 8-11 (amargo no estômago, porque portador de notícias pesadas para os cristãos fiéis).
Merece atenção especial o intervalo ocorrente entre o segundo e o terceiro septenários, ou seja, a secção de 11, 19 a 15,4. Ele prepara a série das taças, apresentando os grandes protagonistas da história da Igreja: a Mulher e o Dragão no capítulo 12; as duas Bestas, manipuladas pelo Dragão, sendo que a primeira sobe do mar (quem olha da ilha de Patmos para o grande mar, se volta para Roma) e representa o poder imperial perseguidor, ao passo que a Segunda Besta sobe da terra (quem de Patmos olha para o continente próximo, volta-se para a Ásia Menor, onde campeia o culto religioso do Imperador); ver respectivamente Ap 13,1 e 11. A sede capital destes dois agentes é Babilônia (= a Roma pagã). O cap. 12, ao apresentar a Mulher e o Dragão, é também uma síntese da mensagem da Apocalipse e da história da Igreja, que será comentada na Quarta parte deste estudo. – Como dito, os agentes do mal estão fadados a perecer, como se lê em 17, 1-20, 15, dando lugar à Jerusalém celeste e à bem-aventurança dos justos.
Por conseguinte as calamidades que o Apocalipse apresenta a se desencadear sobre o mundo, não hão de ser interpretadas ao pé da letra; antes, depreender-se-á o seu sentido à luz das cenas de paz e triunfo que o autor sagrado intercala entre as narrativas de flagelos (enquanto os justos padecem na terra, há plena segurança no céu, conforme o Apocalipse). Justapondo aflições (na terra) e alegria (no céu), São João queria precisamente dizer aos seus leitores que as tribulações desta vida estão em relação estrita com a Sabedoria de Deus; foram cuidadosamente previstas pelo Senhor, que as quis incluir dentro de um plano muito harmonioso, plano ao qual nada escapa. Em conseqüência, ao padecer as aflições da vida cotidiana, os cristãos se deviam lembrar de que tais adversidades não esgotam toda a realidade, mas são apenas as facetas externas e visíveis de uma realidade que tem seu aspecto celeste e grandioso; as calamidades, portanto, sob as quais os cristãos do primeiro século se sentiam prestes a desfalecer, não os deveriam impressionar; constituíam como que o lado avesso e inferior de um tapete que, visto no seu aspecto autêntico e superior, é um verdadeiro tapete oriental, cheio de ricas cores e belos desenhos.
Eis a forma de consolo que o autor sagrado queria incutir aos seus leitores (não só do séc. I, mas de todos os tempos da história): os acontecimentos que nos acometem aqui na terra são algo de ambíguo ou algo que tem duas faces: uma exterior, visível, a qual é muitas vezes aflitiva e tende a nos abater; outra, porém, interior, a qual é grandiosa e bela, pois faz parte da luta vitoriosa do Bem sobre o mal; é mesmo a prolongação da obra do Cordeiro que foi imolado, mas atualmente reina sobre o mundo com as suas chagas glorificadas (cf. c. 5). Por isto, enquanto os cristãos a terra gemem (Ai, ai, ai!), os bem-aventurados na glória cantam (Aleluia, aleluia, aleluia!)
No céu os justos não se acabrunham com o que acontece de calamitoso na terra; antes, continuam a cantar jubilosamente a Deus porque percebem o sentido verdadeiro das nossas tribulações. Pois bem, quer dizer São João, essa mesma paz e tranqüilidade deve tornar-se a partilha também dos cristãos na terra, pois, embora vivam no tempo e no mundo presentes, já possuem em suas almas a eternidade e o céu sob forma de gérmen (o gérmen da graça santificante, que é a semente da glória celeste).
Assim o Apocalipse oferece uma imagem do que é a vida do cristão ou, mais amplamente, a vida da Igreja: é uma realidade simultaneamente da terra e do céu, do tempo e da eternidade. Na medida em que é da terra e do tempo, apresenta-se aflitiva; este aspecto, porém, está longe de ser essencial; no seu âmago, a vida do cristão é celeste e, como tal, é tranqüila, à semelhança da vida dos justos que no céu possuem em plenitude aquilo mesmo que os cristãos possuem na terra em gérmen.
Dois textos em Particular
Examinaremos mais precisamente Ap 12, 1-17 e 20, 1-10.
Ap 12, 1-17
Este capítulo sintetiza toda a história da Igreja sob a forma de luta entre a Mulher e o Dragão, figuras paralelas às da Mulher e da serpente em Gn 3, 15.
Em poucas palavras, este trecho apresenta uma Mulher gloriosa e dolorida ao mesmo tempo. Está para dar à luz um filho que um monstruoso Dragão espreita para abocanhá-lo. A Mulher gera seu Filho, que tem os traços do Messias; Ele escapa ao Dragão e é arrebatado aos céus. Dá-se então uma batalha entre Miguel com seus anjos e o Dragão; este acaba sendo projetado do céu sobre a terra, onde procura abater a Mulher-Mãe, perseguindo-a de diversos modos. Todavia o próprio Deus se encarrega de defender a Mulher no deserto durante os três anos e meio ou os 42 meses ou os 1260 dias de sua existência. Vendo que nada pode contra essa figura grandiosa, a Serpente antiga atira-se contra os demais filhos da Mulher, tentando perdê-los.
Que significa este capítulo?
Está claro que o Dragão representa Satanás, aquele que é “mentiroso e homicida desde o início” (cf. Jo 8, 44).
Quanto à Mulher, não pode ser identificada com algum personagem individual, mas é a Mulher que perpassa toda a história da salvação. Com efeito; já à primeira Eva (= Mãe dos vivos ou da vida) Deus prometeu um nobre papel na obra da Redenção. A primeira Eva (= Mãe da Vida) se prolongou na Filha de Sion (o povo de Israel, do qual nasceu o Messias); a filha de Sion culminou na Segunda Eva, Maria SS., que teve a graça de ser pessoalmente a Mãe de Redentor; por isto em Ap 12, 1s a Mulher é gloriosa como Maria, mas dolorida como o povo de Israel. A maternidade de Maria continua na da Santa Mãe Igreja; esta tem a garantia da incolumidade (cf. Mt 16, 18) que Cristo lhe prometeu, mas os filhos que ela gera nas águas do Batismo estão sujeitas a ser atingidos pela sanha do Dragão, que age neste mundo como um Adversário já vencido, mas cioso de arrebanhar os incautos que lhe dêem ouvidos (S. Agostinho diz que o demônio é um cão acorrentado; pode ladrar, fazendo muito barulho, mas só morde a quem se lhe chegue perto). Por último, a Mulher-Mãe, que exerce sua maternidade por toda a história da salvação, se consumará na Jerusalém celeste, a Esposa do Cordeiro (Ap 21s).
A batalha entre Miguel e o Dragão não corresponde à queda original dos anjos, mas significa plasticamente a derrota de Satanás, vencido quando Cristo venceu a morte por sua Ressurreição e Ascensão. Deus lhe permite tentar os homens nestes séculos da história da Igreja, com um fim providencial, ou seja, a fim de provar e consolidar a fidelidade dos homens. Satanás só age por permissão de Deus.
A duração de 1260 dias ou 31/2 anos que a Mulher passa no deserto, não designa cronologia, mas tem valor simbólico.
Com efeito, 31/2 anos, 42 meses e 1260 dias são termos equivalentes entre si; correspondem à metade de 7 anos. Ora, sendo 7 o símbolo da totalidade, da perfeição e, por conseguinte, da bonança, a metade de 7 vem a ser o símbolo do inacabamento e da dor. Portanto, 31/2 anos (e as expressões equivalentes em meses e dias) no Apocalipse designam toda a história da Igreja na medida em que é algo de ainda não rematado ou na medida em que é luta penosa entre a primeira e a Segunda vinda de Cristo, no deserto deste mundo.
Ap 20,1-10
É este o trecho que fala de aparente reino milenar de Cristo sobre a terra, estando Satanás acorrentado. O milênio seria inaugurado pela ressurreição primeira, reservada aos justos apenas, aos quais seria dado viver em paz e bonança com Cristo. Terminado o milênio, Satanás seria solto para realizar a sua invectiva final, que terminaria com a sua perda definitiva. Dar-se-iam então a ressurreição Segunda, para os demais homens, e o juízo final.
A teoria milenarista, entendida ao pé da letra, foi professada por antigos escritores da Igreja (S. Justino + 165, S. Ireneu + 202, Tertuliano + após 220, Lactâncio + após 317 …) Todavia S. Agostinho (+430) propôs novo modo de entender o texto – o que excluiu definitivamente a interpretação literal; o S. Doutor baseou-se em Jo 5,25-29, onde se lê
“Em verdade, em verdade vos digo, aquele que ouve a minha palavra… passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo, que vem a hora, e já veio, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a ouvirem viverão… Não vos admireis disto, pois vem a hora em que ouvirão sua voz todos os que estão nos sepulcros. Os que praticaram o bem sairão para a ressurreição da vida; os que, porém, praticaram o mal, sairão para a ressurreição do juízo”.
Nesse trecho, o Senhor distingue duas ressurreições: uma, que se dá “agora” (“e já veio”), no tempo presente, quando ressoa a pregação da Boa Nova; é espiritual, devida ao batismo; eqüivale à passagem do pecado original para a vida da graça santificante. A outra é simplesmente futura e se dará no fim dos tempos, quando os corpos forem beneficiados pela vida nova agora latente nas almas.
Por conseguinte no Apocalipse a ressurreição primeira é a passagem da morte para a vida que se dá no Batismo de cada cristão, quando este começa a viver a vida sobrenatural ou a vida do céu em meio às lutas da terra. A ressurreição Segunda é, sim, a ressurreição dos corpos, que se dará quando Cristo vier em seu glória para julgar todos os homens e pôr termo definitivo à história.
Mil anos, em Ap 20, 1-10, designam a história da Igreja na medida em que é luta vitoriosa (“mil” é um símbolo de plenitude, de perfeição; “mil felicidades”, na linguagem popular, são “todas as felicidades”). Pela Redenção na Cruz, Cristo venceu o príncipe deste mundo (cf. Jo 12, 31), tornando-o semelhante a um cão acorrentado, que muito pode ladrar, mas que só pode morder a quem voluntariamente se lhe chegue perto (S. Agostinho). É justamente esta a situação do Maligno na época que vai da primeira à Segunda vinda de Cristo ou no decurso da história do Cristianismo; por isto os três anos e meio que simbolizam o aspecto doloroso desses séculos (já estamos no vigésimo século), são equivalentes a mil anos, caso queiramos deter nossa atenção sobre o aspecto feliz, transcendente ou celeste da vida do cristão que peregrina sobre a terra; a graça santificante é a semente da glória do céu.
Assim se vê quanto seria contrário à mentalidade do autor sagrado tomar ao pé da letra os mil anos do c. 20 e admitir um reino milenário de Cristo visível na terra após o currículo da história atual.
Conclusão
O sistema da recapitulação assim proposto merece francamente ser preferido aos demais, pois é o que mais leva em conta a mentalidade e o estilo do auto sagrado São João; este, também no seu Evangelho, recorre às repetições ou ao estilo de recapitulação em espiral.
Contudo ninguém negará as alusões do Apocalipse a personagens da história antiga (Nero, a invasão dos bárbaros, Roma, Babilônia…). Mediante essas referências, São João não tinha em vista deter a atenção do seu leitor sobre episódios da antigüidade, mas apenas mencionar tipos característicos de mentalidades humanas ou de situações de vida que acompanham toda a história da Igreja: assim Nero vem a ser o tipo dos soberanos políticos que persigam a Igreja em qualquer época (há muitas reproduções de Nero através da história). Por isto também o número 666 da Besta do Apocalipse, adversária dos cristãos, eqüivale (segundo a interpretação mais provável) à expressão Kaisar Neron (Imperador Nero).¹
Roma e Babilônia, por sua vez, designam de maneira típica o poderio deste mundo que, com seus mil atrativos de esplendor e prazer, procura seduzir os discípulos de Cristo para o pecado – A luta a que São João assistiu, entre Roma pagã e a Igreja, é evocada no Apocalipse não por causa dessa luta mesma, mas dentro de uma perspectiva mais ampla, isto é, a fim de simbolizar e predizer o combate perene que se vai travando entre o poder diabólico e Cristo através dos séculos, até terminar com a plena vitória do Senhor Jesus.
Estas considerações concorrem para evidenciar quanto é vã a tentativa de descobrir a predição de fenômenos estranhos da hora presente (bombas atômicas, explosões, enchentes e secas, discos voadores) nos quadros do Apocalipse. Estes são quadros típicos e perenes, quadros que se reproduzem por todo o decorrer da história, variando apenas de facetas.
A sua mensagem abrange todas as situações análogas: querem, sim, dizer que as desgraças da vida presente, por mais aterradoras que pareçam estão sujeitas ao sábio plano da Providência Divina, a qual tudo faz concorrer para o bem daqueles que O amam (cf. Rm 8, 28).
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¹ Segundo nos conta, até hoje não foi publicado algum comentário do Apocalipse tão denso e documentado quanto o do Pe. Allo O.P.
¹ A indicação da identidade da primeira Besta sob a forma do número 666, em Ap 13, 18, pertence ao artifício literário chamado gematria: às letras atribuía-se valor numérico, de modo que cada nome tinha um número equivalente. A interpretação de 666 há de ser procurada no contexto lingüístico, geográfico e histórico de São João e de seus imediatos leitores, não em época posterior ou em outra língua que não o hebraico e o grego. Levando em consideração este princípio, pode-se dizer que 666 eqüivale a Kaisar Neron escrito em caracteres hebraicos:
N V R N R S Q
50 6 200 50 200 60 100 = 666
Esta interpretação é confirmada pelo fato de que alguns manuscritos antigos têm 616 e não 666. Isto se explica pela queda do N no final (ler da direita para a esquerda), compreensível, pois se podia dizer Nero em vez de Neron.
Fonte Eletrônica;
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