Muitos salmos foram compostos no exílio e pós-exílio da Babilônia. Por isso, vários desses são reflexos do drama aí vivido. Por outro lado, a experiência da ação libertadora de Deus no Êxodo é um evento suma importância que foi muito lembrado nos salmos. A memória dessa experiência, com veremos, é transformada em oração. Os motivos que sustentam esse proceder são: a lembrança constante dos fatos importantes da história; o desejo de responder aos apelos proféticos feitos na história; o reforçar a fé amorosa para com Deus; a vontade de reanimar a caminhada; a certeza que a Aliança com Deus não deve ser esquecida.Os Salmos considerados históricos rezam e fazem memória da história do seguinte modo:
Sl 44, 2-9: A lembrança dos fatos passados é motivo para recordar a Deus o seu compromisso e lamentar a situação lastimável em que o povo se encontra no momento presente.
Sl 66, 5-6: O Êxodo, descrito em linguagem poética, é motivo de louvor e de ação de graças.
Sl 68: descreve a gloriosa epopéia de Israel. O povo é forte porque Deus está com ele em todas as circunstâncias.
Sl 77: um indivíduo angustiado, fazendo um confronto entre o presente e o passado, se pergunta se houve mudança no comportamento de Deus para com seu povo. Meditando o passado, ele encontra forças e coragem para viver o presente (vv. 6-21). Indiretamente, ele lembra a Deus os compromissos que Ele tem para com o seu povo.
Sl 78: é uma meditação sobre o passado. Mostra a bondade de Deus e a freqüente infidelidade do povo. No fundo, tudo serviu para Deus realizar o seu plano e chegar à eleição de Davi, o grande rei.
Sl 80, 9-12: os exilados lembram a Deus o esforço que Ele fez para transportá-los Egito e plantá-lo como vinha em Israel. O povo reza para que esse esforço não seja em vão e que Ele possa fazê-los retornar de novo ao país dos pais.
Sl 81, 7-11: Deus mesmo fala e lembra ao povo as maravilhas por Ele realizado no passado, o que é rezado de modo que o povo volte a ter fé em Deus e a servi-Lo com fidelidade.Sl 83, 10-11: oprimido por todos os lados por inimigos, o povo pede a Deus que repita as proezas do passado e trate os reis do presente, assim como Ele tratou os de Madian.
Sl 89, 10-11: esses versículos fazem parte da introdução do salmo. Eles procuram captar a benevolência de Deus, exaltando o seu poder, manifestado na criação e no passado. Nos vv. 21-38, o salmista lembra ao Deus poderoso a promessa que Ele fez a Davi e que, ao que tudo indica, não está se realizando (v. 39ss.).
Sl 95, 8-11: convite a servir a Deus com fidelidade. O povo deve evitar as infidelidades do passado.
Sl 105: o passado manifesta a grandeza e o poder de Deus e é motivo de louvor e de ação de graças.
Sl 106: é uma confissão nacional. O povo, na sua infidelidade, reconhece o mal cometido. Esse salmo apresenta o passado como lição para o presente e convite à conversão.
Sl 107: para mostrar que Deus salva o ser humano de todos os perigos, o salmista enumera uma série de fatos passados, alguns até mesmo desconhecidos a nós. Os fatos do passado são motivos de ação de graças e revelam o amor fiel de Deus.
Sl 111: salmo alfabético que, recorrendo à memória histórica, louva Deus pelos seus feitos.
Sl 114: hino pascal para ser cantado na liturgia. Ele lembra a libertação do Egito.
Sl 135, 8-12: hino de louvor em agradecimento a que fez tão grandes coisas. Deus, ao contrário, não é como os ídolos que não valem nada.
Sl 136, 10-24: ladainha com estribilho: “Sim, para sempre é o seu amor”. Tudo que Deus fez no passado é expressão do seu amor para com o povo.
Sl 132: lembra a Deus as promessas feitas a Davi e pede que conserve esta fidelidade no presente.
Sl 143, 5: o salmista, angustiado, se lembra do passado para poder continuar a crer em Deus.
Motivos históricos transformados em oração
Várias são as situações históricas que o povo se lembrou ao compor os Salmos. As mais relevantes são:Libertação do Egito (18,16; 66,6-7; 68,1-8; 76,7-12; 77,16-21; 78,13; 95,8-10; 5,16-43; 106,7-33; 104,7-9; 114,1);
Canaã (16,5-6; 44,3; 68,12-15; 105,12-15; 106,34-46);
Aliança (78; 95,8-10; 98,3; 99,6-8; 105; 132,1-2);
Ocupação da Terra de Canaã (78; 105; 66; 136; 44; 80);
Patriarcas (20,2; 22,5-6; 44,2; 81,5; 105,8-15);
Criação (146; 8; 104; 135; 136; 107);
Exílio na Babilônia (78; 85,2; 126; 106,47; 137);
Passagem pelo mar Vermelho (78; 105; 106; 136);
Presença e fidelidade de Deus no deserto (78; 106; 81);
Jerusalém como cidade eleita (147; 137; 78);
Sião (14,7; 20,3; 68,18-19);
Pragas no Egito (78; 105);
Templo de Jerusalém (63; 100);
Eleição de Davi (78; 89);
Moisés (105);
Tribos (16,5-6);
Sinai (18,8);
Idolatria (106).
Os motivos históricos acima elencados estão presentes nos 21 Salmos considerados históricos. Embora devamos considerar com L. Sabourin que não existe gênero literário apropriado para esses salmos que aludem ao passado, a não ser os Salmos 78 e 105 (Nota 1 ), onde o êxodo é, o fato, mais lembrado. Eles pertencem aos mais variados gêneros literários: hinos, súplicas, didáticos, lamentações e ação de graça.
O tipo de oração decorrente dos Salmos “históricos” mostra que, distanciando-se no tempo da ação vitoriosa e libertadora de Deus no passado, o povo percebe melhor todo o alcance da intervenção histórica de Deus. A vida é percebida numa outra dimensão. E com ela nasce a certeza que é preciso ser fiel ao plano libertador de Deus. A liberdade implica responsabilidade.
O êxodo é o fato histórico mais lembrado. Assim como no Pentateuco, os Salmos históricos rezam esse evento como ato fundante da histórica de Israel.
A releitura dos fatos históricos se caracteriza por ser positiva, negativa, individual ou coletiva. Assim que, o Salmo 105 relê a história de forma positiva e o 106, de forma negativa. Dos 21 Salmos “históricos”, somente dois (77 e 143) são individuais, sendo os demais, coletivos. Isso quer dizer que o passado do povo é lido e vivido a partir de relações coletivas com Deus e não somente de relações pessoais. O povo rezava assumindo coletivamente a história pessoal. Opressões, alegrias e sofrimentos passam a ser propriedade coletiva.Na história de Israel, o exílio da Babilônia significou a ausência total de luz. O povo já não sabia mais por onde andar, em quais estruturas se apoiar. A experiência de trevas somente começou a desaparecer quando o povo percebeu que somente era a Luz que poderia guiá-los. Quando isso voltou a ser o norte do povo de Israel, vários Salmos foram criados para expressar a confiança, a esperança e o amor de Deus que os levariam de volta à pátria distante e roubada pelo opressor. O Salmo 137 é um bom exemplo para descobrir a esperança de um “povo oprimido que canta e conta a sua história”.
Os atributos de Deus nos Salmos “históricos”
Os Salmos ora analisados mostram que na história não há um ponto de chegada, mas sim contínuas partidas, as quais convergem sempre para o absoluto, Deus. Essa conclusão nasce da experiência de um Deus itinerante feita pelo povo.
A memória da experiência do Êxodo/Aliança como intervenção libertadora de Deus na história de Israel modificou o modo de pensar e relacionar-se com Deus. O povo passou a perceber na sua vida a constante ação da providência divina. Daí nascem várias imagens de Deus nos salmos, a saber:
Escudo e Protetor (18,31; 27,10; 28,7; 33,20; 84,12);
Iluminador (118, 27);
Aquele que proporciona alegria e paz (4,8-9);
Abrigo e socorro para quem crê (7,2; 11,1; 40,18; 62,8; 90,1; 91,2; 94,22; 95,3; 99,13);
Santo e Pastor (amado) de Israel (22,4; 78,41; 80,2; 89,19; 95,7; 100,3);
Libertador e defensor (78,35.56; 83,19; 89,28; 91,1-9; 92,2);Rochedo que salva (89,27; 92,16; 95,1; 103,1.3);
Misericordioso e fiel (44,27; 78,38; 80,5-8.15.20; 84,2.4.9.13, 86,5.15; 89,9; 103,8; 106,1);
Dos pais (20,2; 44,2; 81,2.5; 84,9);
Poderoso salvador (79,9; 85,5; 86,2; 88,2; 91,1);
Vivo e juiz da terra (82,8; 84,3;94,2);
Terrível e vingador (76,12b; 94,1; 96,4);
Soberano, Grande e Senhor das alturas (l76,2b; 78; 93,4,104,1).
O modo como Israel nomeia Deus expressa o seu profundo sentimento de pertença e confiança na ação salvífica de Deus. As imagens refletem a esperança de um povo historicamente sofrido. Deus é grande, está acima de tudo e próximo de cada israelita em particular.
Ao elevar a Deus a sua prece, o salmista tem consciência que Ele não necessita saber quais são os seus atributos, mas ele precisa expressá-lo sempre para que a sua recordação o mantenha no Caminho, na Torá.
A história rezada no Salmo 78
Considerado o segundo maior salmo do saltério, o Sl 78 reza a história de Israel meditando sobre a bondade de Deus, ingratidão e infidelidade do povo. A comunidade que produziu esse Salmo não se esqueceu de deixar registrado o apelo à conversão, penitência e observância da Torá (conduta, caminho, ensinamento, modo de vida). A memória do povo é resgatada. A esperança anima o povo a caminhar na certeza de Deus nunca os abandonará. Cada israelita é um eterno apaixonado por Deus que se revela na história e na criação do mundo. O “hoje” do tempo cronológico aponta sempre para o “amanhã” do tempo cósmico, de onde viemos e para aonde voltaremos.
Época do Sl 78
O Sl 78 menciona alguns fatos que poderiam nos ajudar a datá-lo. Por outro lado, esse parece ser um problema não fácil de ser resolvido. Os estudiosos divergem na opinião. Pessoas e dados históricos mencionados no Sl 78 são: Efraim e seus pecados (v.9.67-68), Egito (v.12), Campo de Tânis (v.12), passagem do Mar Vermelho (v.13), período no Deserto (v.15ss.), pragas do Egito (v.44 ss.), eleição de Judá (v.68), Templo (v. 69), eleição de Davi (v.70). Considerando os dados acima mencionados, podemos falar das seguintes possibilidades de datação do Sl 78:Época de Davi (1100-970 a.E.C.)
Entre a divisão dos Reinos (932 a.E.C) e caída da Samaria (722 a.E.C);
Época de Ezequias (716-687 a.E.C.);
Época de Josias e reforma deuteronomista (622 a.E.C.);
Pós-exílio babilônico (536 a.E.C.).
A tendência maior dos estudiosos parece ser a opção b. A composição do Sl 78 estaria situada entre o século X e VIII a.E.C. Motivos:
estilo arcaico do Salmo;
elementos da tradição e teologia israelita, como deserto e aliança, são relidos politicamente;
a escola de Asaf, com esse salmo, expressou a sua crítica à caída do reino de Salomão, causado por Jeroboão I (Nota 3);
alusão (vv.56-64) à destruição de Silo, causada pela idolatria do Reino do Norte.
Estrutura do Sl 78
Os salmos são poesias e assim devem ser lidos, o que não nos impede de perceber, na maioria deles, uma estrutura literária capaz de evidenciar o objetivo que levou o salmista (comunidade) a compô-lo. E não é por menos que o Sl 78 se encontra na metade do livro dos Salmos. Com isso, Israel que evidenciar a centralidade sua história, rezada e relida com os olhos de Deus. Dito isto, vejamos a estrutura literária do Sl 78
FONTE ELETRÔNICA;
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