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sábado, 24 de abril de 2010

FÉ,VERDADE E CULTURA

A busca da verdade – sobre Deus e sobre o mundo – é profundamente humana e aparece em todas as culturas. Mas a verdade não é meramente relativa, como se as culturas fossem incomunicáveis e incapazes de evoluir. É por ela que a fé católica encontra-se com a filosofia e com as outras religiões. Estas reflexões do então Cardeal Ratzinger sobre a Encíclica Fides et Ratio, de João Paulo II, foram apresentadas no Primeiro Congresso Internacional da Faculdade San Dámaso de Teologia, em Madrid, no dia 16.02.2000.
Do que trata, essencialmente, a Encíclica Fides et ratio? É um documento só para especialistas, uma tentativa de renovar a partir da perspectiva cristã uma disciplina em crise, a Filosofia, e portanto interessante só para os filósofos, ou coloca uma questão que nos afeta a todos? Dito de outra maneira: A Fé precisa realmente da Filosofia, ou a Fé – que, em palavras de Santo Ambrósio, foi confiada a pescadores e não a dialéticos – é completamente independente da existência ou inexistência de uma filosofia aberta em relação a ela? Se considerarmos a Filosofia apenas como uma disciplina acadêmica entre outras, então a Fé é de fato independente dela. Mas o Papa João Paulo II entende a Filosofia num sentido muito mais amplo e mais conforme com a sua origem. A Filosofia pergunta se o homem pode conhecer a verdade, as verdades fundamentais sobre si mesmo, sobre a sua origem e o seu futuro, ou se vive numa penumbra que não é possível iluminar e tem de recolher-se, em última análise, ao âmbito da utilidade.
A característica própria da Fé cristã no mundo das religiões é que afirma dizer-nos a verdade sobre Deus, o mundo e o homem, e que pretende ser a religio vera, a religião da verdade.
Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida: nestas palavras de Cristo segundo São João (14, 6) está expressa a pretensão fundamental da Fé cristã. Dessa pretensão, brota o impulso missionário da Fé: se a Fé cristã é a verdade, diz respeito a todos os homens. Se fosse apenas uma variante cultural das experiências religiosas do homem, cifradas em símbolos e nunca decifradas, então faria bem em permanecer na sua cultura e deixar as outras em paz.
Mas isto significa o seguinte: a questão da verdade é a questão essencial da Fé cristã, e, neste sentido, a Fé tem inevitavelmente a ver com a Filosofia. Se tivesse que caracterizar brevemente a intenção da Encíclica, diria que quer reabilitar a questão da verdade num mundo marcado pelo relativismo. Perante a situação atual da Ciência – que certamente busca verdades, mas qualifica a questão da verdade como sendo não-científica -, a Encíclica apresenta essa questão como tarefa racional e científica; caso contrário, a Fé perderia o ar que respira. A Encíclica quer simplesmente animar-nos de novo a empreender a aventura da verdade. Por isso fala daquilo que está fora do âmbito da Fé, mas também daquilo que está no próprio centro do mundo da Fé.
1. AS PALAVRAS, A PALAVRA E A VERDADE
Num livro de sucesso publicado nos anos quarenta, Cartas do diabo ao seu sobrinho, o escritor e filósofo C.S. Lewis mostrou magnificamente como não é moderno perguntar pela verdade. O livro compõe-se de cartas fictícias de um demônio superior, Screwtape, que dá lições a um principiante na arte de seduzir o homem, instruindo-o quanto ao modo correto de proceder. O demônio pequeno tinha manifestado aos seus superiores a preocupação de que justamente os homens mais inteligentes poderiam ler os livros dos sábios antigos e descobrir assim os rudimentos da verdade. Screwtape tranqüiliza-o esclarecendo que os espíritos infernais felizmente conseguiram persuadir os eruditos do mundo ocidental a aderir ao “ponto de vista histórico”, o que significa que “a única questão que com certeza nunca levantarão é a relativa à verdade do que leram; em vez disso, perguntar-se-ão sobre as repercussões e as influências recíprocas, sobre a evolução do escritor estudado, sobre a história da sua autoridade e outras coisas desse tipo”.
Josef Pieper, que reproduz essa passagem de C.S. Lewis no seu tratado sobre a interpretação, assinala a esse respeito que as edições de Platão ou de Dante, por exemplo, nos países dominados pelo comunismo, antepunham ao texto uma introdução que pretendia proporcionar ao leitor uma compreensão histórica e assim excluir a questão da verdade. Uma cientificidade exercida dessa forma torna os espíritos imunes à verdade. A questão de saber se o que foi dito pelo autor é ou não verdadeiro, e em que medida, seria uma questão “não-científica”; tirar-nos-ia do campo do demonstrável e do verificável e nos faria recair na ingenuidade do mundo pré-crítico. Deste modo, neutraliza-se também a leitura da Bíblia: podemos explicar quando e em que circunstâncias surgiu determinado texto, e assim conseguimos classificá-lo dentro do “histórico”, que no fim das contas não nos afeta.
Por trás desse modo de interpretação histórico, há uma filosofia, uma atitude apriorística ante a realidade, que nos diz: não faz sentido perguntar sobre o que é, só podemos perguntar-nos sobre o que podemos fazer com as coisas. A questão não é a verdade, mas a práxis, o domínio das coisas para nosso proveito. Diante dessa redução aparentemente iluminadora do pensamento humano, surge sem mais a pergunta: e o que é realmente o que nos traz proveito? E para que nos aproveita? Aliás, para que existimos?
O observador profundo verá nessa atitude fundamental moderna uma falsa humildade e, ao mesmo tempo, uma falsa soberba: falsa humildade, porque nega ao homem a capacidade de conhecer a verdade; e falsa soberba, porque esse homem se situa acima das coisas, acima da própria verdade, e – na medida em que erige como meta do seu pensamento a ampliação do seu poder – acima da realidade.
O que em Lewis aparece sob a forma de ironia, podemos encontrá-lo hoje apresentado “cientificamente” na crítica literária, em que a a questão da verdade é abertamente descartada como não-científica. O exegeta alemão Mario Reiser chamou a atenção para uma passagem de Umberto Eco no seu best-seller O nome da rosa, em que diz: “A única verdade consiste em aprender a libertar-se da paixão doentia pela verdade”.
O fundamento para a renúncia inequívoca à verdade estriba no que hoje se denomina o “giro lingüístico”: não se poderia remontar para além da linguagem e das suas representações, a razão estaria condicionada pela linguagem e vinculada à linguagem. Já em 1901 F. Mauthner cunhou a seguinte frase: “O que se denomina pensamento é pura linguagem”. M. Reiser comenta, neste contexto, o abandono da convicção de que com meios lingüísticos se pode ascender ao que é supralingüístico. O relevante exegeta protestante U. Luz afirma – totalmente de acordo com o que antes dizia Screwtape – que a crítica histórica abdicou na Idade Moderna da questão da verdade, e considera-se obrigado a aceitar e reconhecer como correta essa capitulação: agora já não haveria uma verdade a buscar para além do texto, mas apenas posições sobre a verdade que concorreriam entre si, ofertas de verdade que seria preciso defender com um discurso público no mercado das visões-de-mundo.
Quem medita sobre semelhantes modos de ver as coisas, perceberá que lhe vem quase que inevitavelmente à memória uma passagem profunda do Fedro de Platão. Nela, Sócrates conta a Fedro uma história ouvida dos antigos, que “tinham conhecimento do que é verdadeiro”. Certa vez Thot, o “pai das letras” e o “deus do tempo”, teria visitado o rei egípcio Thamus, de Tebas. Instruiu o soberano em diversas artes que havia inventado, e especialmente na arte de escrever que tinha concebido. Ponderando o seu próprio invento, disse ao rei: “Este conhecimento, ó rei, tornará os egípcios mais sábios e fortalecerá a sua memória; é o elixir da memória e da sabedoria”. Mas o rei não se deixou impressionar. Previu o contrário como conseqüência do conhecimento da escrita: “Este método produzirá esquecimento nas almas dos que o aprenderem porque descuidarão o exercício da memória, já que agora, fiando-se da escrita externa, recordarão apenas de uma maneira externa, não a partir do seu próprio interior e de si mesmos. Por conseguinte, tu inventaste um meio, não para recordar, mas para perceber, e transmites aos teus aprendizes apenas a representação da sabedoria, não a própria sabedoria. Pois agora são eruditos em muitas coisas, mas sem verdadeira instrução, e assim pensam ser entendidos em mil coisas quando na realidade não entendem nada, e são gente com quem é difícil tratar, pois não são verdadeiros sábios, mas sábios apenas na aparência”.
Quem pensa no modo como hoje os programas de televisão do mundo inteiro inundam o homem com informações e o tornam assim “sábio na aparência”; quem pensa nas enormes possibilidades do computador e da Internet, que, por exemplo, permitem que qualquer um tenha acesso a todos os textos de um Padre da Igreja e veja as palavras sem no entanto ter compreendido o pensamento, esse não considerará exageradas as prevenções do rei. Platão não rejeita a escrita enquanto tal – como nós também não rejeitamos as novas possibilidades de informação, antes fazemos delas um uso agradecido -, mas dá um sinal de alerta cuja seriedade se comprova diariamente pelas conseqüências do “giro lingüístico” e pelas muitas circunstâncias que são familiares a todos. H. Schade mostra o núcleo daquilo que Platão tem a dizer-nos hoje quando escreve: “É acerca do predomínio de um mero método filológico e da conseqüente perda da realidade que Platão nos previne”.
Quando a escrita, o escrito, é convertido em barreira que oculta o conteúdo, transforma-se numa anti-arte, que não torna o homem mais sábio, mas o leva a extraviar-se numa sabedoria falsa e doente. Por isso, em face do “giro lingüístico”, A. Kreiner adverte com razão: “O abandono da convicção de que se pode remeter com meios lingüísticos a conteúdos extralingüísticos equivale ao abandono de um discurso que de algum modo ainda estava cheio de sentido”. E sobre esta mesma questão João Paulo II comenta na Encíclica Fides et ratio: “A interpretação desta Palavra (a de Deus) não pode levar-nos de interpretação em interpretação, sem nunca chegarmos a descobrir uma afirmação simplesmente verdadeira”. O homem não está aprisionado na sala de espelhos das interpretações; pode e deve buscar o acesso ao real, que está além das palavras e se lhe revela nas palavras e através delas.
Aqui chegamos ao ponto central da discussão da Fé cristã com determinado tipo de cultura moderna, que gostaria de ser considerada como a cultura moderna sem mais, mas que, felizmente, é apenas uma variedade desta. Isto fica muito claro, por exemplo, na crítica que o filósofo italiano Paolo Flores d’Arcais fez à Encíclica Fides et ratio.
Como a Encíclica insiste na necessidade da questão da verdade, comenta esse pensador que “a cultura católica oficial (isto é, a Encíclica) já não tem nada que dizer à cultura «enquanto cultura»…”. Mas isso significa também que a pergunta pela verdade estaria fora da cultura “enquanto cultura”. Nesse caso, porém, essa tal cultura “enquanto cultura” não seria antes uma anticultura? E não seria a sua presunção de ser “a cultura sem mais” uma presunção arrogante e que despreza o ser humano?
Fica evidente que é exatamente disso que se trata quando Flores d’Arcais acusa a Encíclica de ter conseqüências mortíferas para a democracia e identifica o seu ensinamento com o tipo “fundamentalista” do Islã. Comentando o fato de o Papa ter qualificado como carentes de validade autenticamente jurídica as leis que permitem o aborto e a eutanásia, argumenta: quem se opusesse dessa forma a um Parlamento eleito e tentasse exercer o poder secular com uma máscara eclesial, mostraria que o selo do dogmatismo católico permanecerá essencialmente estampado no seu pensamento.
Semelhantes afirmações pressupõem que não pode haver nenhuma instância acima das decisões da maioria. A maioria conjuntural converte-se num absoluto. Porque, de fato, volta-se a cair num absoluto, algo inapelável. Estamos expostos ao domínio do positivismo e à absolutização do conjuntural, do manipulável. Se o homem põe-se fora da verdade, necessariamente passa a estar submetido ao conjuntural, ao arbitrário. Por isso, não é “fundamentalismo”, e sim um dever de humanidade proteger o homem contra a ditadura do conjuntural convertido em absoluto e devolver-lhe a sua dignidade, que consiste justamente em que nenhuma instância humana pode dominá-lo porque está aberto à própria verdade. Precisamente pela sua insistência na capacidade do homem para a verdade, a Encíclica é uma apologia sumamente necessária da grandeza do homem contra tudo o que pretende apresentar-se como a cultura tout court.
Naturalmente, é difícil voltar a dar carta de cidadania à questão da verdade no debate público, por causa do cânon metodológico que hoje se impôs como selo de garantia de cientificidade. Por isso é necessário um debate fundamental sobre a essência da Ciência, sobre a verdade e o método, sobre a tarefa que cabe à Filosofia e sobre os possíveis caminhos que ela pode trilhar.
O Papa não considerou que era tarefa sua tratar na Encíclica da questão – totalmente prática – de se a verdade pode chegar a ser novamente científica, e como. Mas mostra por que devemos acometer essa tarefa. Não quis realizar ele mesmo a tarefa dos filósofos, mas cumpriu a tarefa de denunciar e advertir-nos contra aquilo que é uma tendência auto-destrutiva da “cultura enquanto tal”. Aliás, justamente essa chamada de atenção é um ato autenticamente filosófico, que revive no presente a origem socrática da Filosofia e com isso mostra a potência filosófica contida na Fé bíblica.
Opõe-se à essência da Filosofia um certo tipo de cientificidade que barra o caminho para a questão da verdade, ou mesmo a torna impossível. Essa autoclausura, esse apoucamento da razão não pode ser a norma da Filosofia, nem a Ciência como um todo pode tornar impossíveis as perguntas que são próprias do homem, sem as quais a própria Ciência converte-se num ativismo vazio e, no fim das contas, perigoso. O papel da Filosofia não é o de submeter-se a um cânon metodológico qualquer, por ser ele legítimo para certos setores do pensamento. Sua tarefa tem de ser justamente a de pensar a cientificidade como um todo, conceber criticamente a sua essência e – de maneira racionalmente responsável – ir mais além, rumo àquilo que lhe dá sentido.
A Filosofia tem de perguntar-se sempre sobre o homem, e portanto questionar-se sempre sobre a vida, sobre a morte, sobre Deus e sobre a eternidade. Para isso, terá de servir-se hoje, antes de mais nada, dos becos sem saída aos quais chega aquele tipo de cientificidade que afasta o homem de tais questões. E partindo dessas aporias – que a nossa sociedade põe à mostra – tentar sempre abrir novamente o caminho rumo ao que é necessário, e rumo àquilo que se faz necessário.
Na história da Filosofia moderna não faltaram tentativas como essa – também hoje em dia há suficientes ensaios promissores -, visando abrir outra vez a porta para a questão da verdade: uma porta para além da linguagem que gira sobre si mesma. Nesse sentido, a chamada da Encíclica é sem dúvida crítica para com a nossa situação cultural atual, mas ao mesmo tempo está em profunda união com os elementos essenciais do esforço intelectual da Idade Moderna.
A confiança em buscar a verdade e encontrá-la nunca é anacrônica. É justamente essa confiança que mantém o homem na sua dignidade, que rompe os particularismos e une as pessoas – ultrapassando os limites culturais -, em virtude da sua comum dignidade.
2. CULTURA E VERDADE
a) A essência da Cultura
Tratamos até aqui do debate entre a Fé cristã que a Encíclica expressa e um tipo concreto de cultura moderna; por isso as nossas reflexões deixaram entre parênteses o lado técnico-científico da Cultura: o olhar dirigiu-se ao que se relaciona com as ciências humanas na nossa cultura. Não seria difícil mostrar que a sua desorientação quanto à questão da verdade (que acabou por converter-se em ira contra esse tema) reside, em última análise, na pretensão de se alcançar o mesmo cânon metodológico, o mesmo tipo de segurança, que se dá no campo empírico.
A renúncia metodológica praticada pela ciência natural, que a leva a ater-se ao que pode ser verificado, converte-se em credencial da cientificidade; mais ainda: converte-se na própria racionalidade. Essa redução metodológica, cheia de sentido – aliás, necessária – no âmbito da ciência empírica, converte-se assim num muro para a questão da verdade. No fundo, trata-se do problema da verdade e do método, da universalidade de um cânon metodológico estritamente empírico. Em face desse cânon, o Papa defende a multiplicidade de caminhos do espírito humano, a amplitude da racionalidade, que precisa conhecer diversos métodos conforme a índole do objeto. O que é imaterial não pode ser abordado com os métodos que correspondem ao que é material. Assim poderia ser resumida, em grandes traços, a denúncia do Papa contra uma forma unilateral de racionalidade.
O debate com a cultura moderna, o debate acerca da verdade e do método, é a primeira fibra do tecido da Encíclica. Mas a questão acerca da verdade da cultura apresenta-se ainda sob outro aspecto, que substancialmente remete-se ao âmbito propriamente religioso. Hoje, contrapõe-se de bom grado a relatividade das culturas à pretensão universal do cristão, fundamentada na universalidade da verdade. O tema ressoa já no século XVIII em Gotthold Ephraim Lessing, que apresenta as três grandes religiões na parábola dos três anéis, dos quais um tem que ser o autêntico, mas cuja autenticidade já não é verificável. A questão da verdade é insolúvel e é substituída pela questão do efeito curativo e purificador da religião.
Logo no início do século XX, Ernst Troeltsch refletiu expressamente sobre a questão da religião e da cultura, da verdade e da cultura. No princípio ainda considerava o Cristianismo como a revelação completa da religiosidade personalista, como a única ruptura completa com os limites e as condições da religião natural. Mas, no decorrer do seu caminho intelectual, a determinação cultural da religião foi fechando-lhe cada vez mais o olhar para a verdade e subordinando todas as religiões à relatividade das culturas. No final, a validez do Cristianismo converte-se num assunto europeu: para ele o Cristianismo seria a forma de religião adequada à Europa, enquanto atribui ao budismo e ao bramanismo uma autonomia absoluta. Na prática elimina-se a questão da verdade, e os limites entre as culturas tornam-se intransponíveis.
Por isso, uma Encíclica toda dedicada à aventura da verdade deveria também colocar a questão da relação entre verdade e cultura. Deveria perguntar se pode dar-se uma comunhão das culturas numa única verdade, se a verdade pode ser decidida para todos os homens, transcendendo as diversas formas culturais, ou se afinal teríamos que pressenti-la apenas assintoticamente, em meio a formas culturais diversas e até opostas.
A um conceito estático de cultura que pressupõe formas culturais fixas – que afinal só convivem umas com as outras, sem que haja comunicação entre elas -, o Papa opôs, na Encíclica, uma compreensão dinâmica e comunicativa da cultura. E ressalta que as culturas, “quando estão profundamente enraizadas no humano, trazem consigo o testemunho da abertura típica do homem ao universal e à transcendência”. Por isso as culturas – que são expressões do único ser do homem – estão caracterizadas pela dinâmica do homem, que transcende todos os limites: não estão fixadas numa dada forma de uma vez para sempre. Têm a capacidade de progredir e de transformar-se, e também o perigo da decadência. Estão voltadas para o encontro e para a fecundação mútua.
Quanto maiores e mais genuínas são as culturas, mais impregnadas estão da abertura interior do homem a Deus: trazem impressa uma predisposição para a revelação de Deus. A Revelação não lhes é estranha. Responde a uma espera interior presente nas próprias culturas. A propósito disso, Theodor Haecker falou do caráter de “advento” das culturas pré-cristãs, e são muitas as pesquisas de História das Religiões que puderam mostrar de maneira concreta essa alusão das culturas ao Logos de Deus, encarnado em Jesus Cristo.
Tendo isso em vista, o Papa vale-se da lista de nações contida no relato pascal dos Atos dos Apóstolos (2, 7-14), onde nos é narrado como o testemunho da Fé em Cristo é perceptível e comunicável mediante todas as línguas, e em todas as línguas, isto é, em todas as culturas das quais a língua é expressão. Em todas elas, a palavra humana faz-se portadora do falar próprio de Deus, do seu próprio Logos. E a Encíclica acrescenta: “O anúncio do Evangelho nas diversas culturas, embora exija a fé de cada destinatário, não o impede de conservar uma identidade cultural própria. Isso não cria nenhuma divisão, porque o povo dos batizados caracteriza-se por uma universalidade que sabe acolher cada cultura, favorecendo o progresso daquilo que nela está implícito, rumo à sua plena explicitação na verdade”.
A partir disso – e no que diz respeito às relações entre a Fé cristã e as culturas pré-cristãs em geral – o Papa, tomando o caso da cultura indiana, desenvolve de modo exemplar os princípios que devem ser observados no encontro dessas culturas com a Fé. Em primeiro lugar, chama brevemente a atenção para o grande auge espiritual do pensamento indiano, que luta por libertar o espírito das condições espaço-temporais, exercitando assim a abertura metafísica do homem, que depois haveria de receber uma configuração especulativa em importantes sistemas filosóficos.
Com essas indicações, o Papa põe em evidência a tendência universal das grandes culturas, a sua superação do tempo e do espaço, e também o seu avanço na direção do ser do homem e das suas supremas possibilidades. Aqui reside a capacidade de diálogo entre as culturas, neste caso entre a cultura indiana e as que cresceram no âmbito da Fé cristã.
O primeiro critério infere-se espontaneamente, por assim dizer, no próprio contato interior com a cultura indiana: consiste na “universalidade do espírito humano, cujas exigências fundamentais são idênticas nas mais diversas culturas”.
Dele se segue um segundo critério: “Quando a Igreja entra em contato com grandes culturas a que antes não tinha chegado, não pode esquecer o que adquiriu quando da sua inculturação no pensamento greco-latino. Rejeitar essa herança seria ir contra o desígnio providencial de Deus…”
Finalmente a Encíclica aponta um terceiro critério, decorrente das reflexões anteriores sobre a essência da cultura: “Deve-se evitar confundir a legítima reivindicação do que há de específico e original no pensamento indiano com a idéia de que uma tradição cultural deva encerrar-se na sua diferença e afirmar-se na sua oposição às demais tradições. Isso seria contrário à própria natureza do espírito humano”.
b) A superação das culturas na Bíblia e na história da Fé
Tendo o Papa insistido no caráter irrenunciável da herança cultural forjada no passado, que chegou a ser um veículo para a verdade comum de Deus e do homem, surge então espontaneamente a questão de se isso não seria canonizar um eurocentrismo da Fé. Um eurocentrismo que não parece ter sido superado pelo fato de que, ao longo da História, possam introduzir-se – ou já se tenham introduzido – novas heranças na identidade da fé constante que afeta a todos.
É uma questão que não se pode evitar. Até que ponto a Fé é grega ou latina, tendo aliás surgido não no mundo greco-latino, mas no mundo semita do antigo Oriente, onde estavam e estão em contato a Ásia, a África e a Europa? A Encíclica assume uma posição sobre isso, especialmente no seu segundo capítulo, em que trata do desenvolvimento do pensamento filosófico no interior da Bíblia, e no quarto capítulo, ao apresentar o encontro decisivo dessa sabedoria da razão cultivada na Fé com a sabedoria grega da Filosofia. Gostaria de acrescentar o seguinte:
Um variado acervo de pensamento religioso e filosófico, a partir de mundos culturais diversos, já está elaborado na Bíblia. A Palavra de Deus desenvolve-se num processo de encontros com a busca humana por respostas às suas perguntas últimas. Essa Palavra não é algo caído do céu como um meteorito: é precisamente uma síntese de culturas. Vista com mais profundidade, permite reconhecer um processo no qual Deus luta com o homem, fazendo com que este se vá abrindo lentamente à sua Palavra mais profunda, a Si próprio: ao Filho, que é o Logos.
A Bíblia não é a mera expressão da cultura do povo de Israel. Está, pelo contrário, continuamente em disputa com a intenção – totalmente natural desse povo – de ser ele próprio e de instalar-se na sua própria cultura. A Fé em Deus e o sim à sua vontade vão-lhe continuamente desarraigando as representações e aspirações próprias. Deus enfrenta-se continuamente com a religiosidade peculiar a Israel e com a sua cultura religiosa, que queria expressar-se no culto dos lugares altos, à deusa celeste e na pretensão de poder da própria monarquia.
Começando pela a cólera de Deus e de Moisés contra o culto do bezerro de ouro no Sinai e até os últimos profetas depois do Exílio, tudo sempre concorre para que Israel desprenda-se da sua própria identidade cultural, abandone, por assim dizer, o culto à própria nacionalidade, o culto à raça e à terra, para inclinar-se diante do Deus totalmente outro, de Quem não podem apropriar-se, do Deus que criou o Céu e a Terra, e que é Deus de todos os povos.
A Fé de Israel significa uma permanente auto-superação da própria cultura na abertura no horizonte da verdade comum. Os livros do Antigo Testamento podem parecer, sob muitos pontos de vista, menos piedosos, menos poéticos, menos inspirados do que certas passagens mais importantes dos livros sagrados de outros povos. Mas em troca têm sua singularidade na índole combativa da Fé contra aquilo que é próprio, nesse desarraigamento daquilo que é próprio, iniciado com a peregrinação de Abraão.
A libertação da Lei que São Paulo alcança pelo seu encontro com Jesus Cristo ressuscitado conduz essa orientação fundamental do Antigo Testamento à sua conseqüência lógica: a plena universalização dessa Fé, separada da ordem nacional. Agora todos os povos são convidados a ingressar nesse processo de superação daquilo que é próprio, começado em primeiro lugar em Israel. Todos são convidados a se converterem a Deus, que se despojando de Si mesmo em Jesus Cristo derrubou o “muro de inimizade” que havia entre nós (cfr. Ef 2, 14) e nos congrega a todos na auto-entrega da Cruz.
Desse modo, a Fé em Jesus Cristo é na sua essência um permanente abrir-se, uma irrupção de Deus no mundo humano com a correspondente abertura do homem para Deus, que ao mesmo tempo congrega os homens. Tudo o que é próprio pertence agora a todos, e tudo o que é alheio chega a ser, ao mesmo tempo, algo próprio. E tudo abarcado pela palavra do pai ao filho mais velho: Tudo o que é meu é teu (Lc 15, 31), que torna a aparecer na oração sacerdotal de Jesus como modo de o Filho dirigir-se ao Pai: Tudo o que é meu é teu, e tudo o que é meu é teu” (Jo 17, 10).
Esse padrão determina também o encontro da mensagem revelada com a cultura grega, que por certo não começa apenas com a evangelização cristã: já se desenvolvera dentro dos escritos do Antigo Testamento – sobretudo mediante a sua tradução ao grego -, e a partir de então no judaísmo primitivo. Esse encontro era possível, porque já fora aberto o caminho no mundo grego para um acontecimento de autotranscendência como esse. Os Padres da Igreja não verteram sem mais no Evangelho uma cultura grega que se mantinha em si e por si mesma: puderam assumir o diálogo com a filosofia grega e convertê-la em instrumento do Evangelho justamente porque nesse mundo grego já se tinha iniciado, mediante a busca de Deus, uma autocrítica da própria cultura e do próprio pensamento.
A Fé une os diversos povos – começando pelos germanos e pelos eslavos, que na época das invasões bárbaras tomaram contato com a mensagem cristã, até os povos da Ásia, da África e da América – não à cultura grega como tal, mas à sua auto-superação, que era o verdadeiro ponto de contato para a interpretação da mensagem cristã. A partir daí a Fé os introduz na dinâmica da sua auto-superação.
Richard Schäffler disse recentemente, e de modo certeiro, que a pregação cristã desde o princípio exigiu dos povos da Europa (que aliás nem existia antes da evangelização cristã) “a renúncia a todos os seus respectivos «deuses» autóctones, muito antes de entrarem em seu campo de visão as culturas extra-européias”. É a partir daí que se deve entender por que a pregação cristã entrou em contato com a filosofia, e não com as religiões. Rapidamente caíram em desuso as tentativas de, por exemplo, interpretar Cristo como sendo o verdadeiro Dionísio, Esculápio ou Hércules. O fato de se ter entrado em contato com a filosofia, e não com as religiões, tem a ver com que não se tenha canonizado uma cultura, e sim se pôde entrar nela justamente no ponto onde ela já havia começado a sair de si mesma: por onde tinha começado ela mesma a sair de si, por onde tinha iniciado o caminho de abertura à verdade comum, deixando atrás a instalação no que lhe era meramente próprio. Isso constitui também hoje uma indicação fundamental para a questão dos contatos e transferências a outros povos e culturas.
A Fé não pode sintonizar com filosofias que excluam a questão da verdade, mas sintoniza, sim, com movimentos que se esforçam por sair do cárcere do relativismo. Da mesma forma, não pode integrar diretamente as antigas religiões. No entanto, as religiões podem proporcionar-lhe formas e imagens de diverso tipo, mas sobretudo atitudes, como o respeito, a humildade, a abnegação, a bondade, o amor ao próximo, a esperança na vida eterna. Isto parece-me – seja dito entre parênteses – ser importante também para a questão do significado salvífico das religiões. Não salvam, por assim dizer, na medida em que são sistemas fechados e pela fidelidade a esses sistemas, mas colaboram com a salvação na medida em que levam os homens a “perguntar-se por Deus” (como diz o Antigo Testamento), a “buscar o seu rosto”, a “buscar o Reino de Deus e a sua justiça”.
3. RELIGIÃO, VERDADE E SALVAÇÃO
Permitam-me que me detenha um momento mais nesse ponto, pois toca um aspecto fundamental da existência humana, e que com razão representa também uma questão radical no atual debate teológico. Isso porque se trata do próprio impulso do qual partiu a Filosofia, e ao qual tem de voltar sempre: nele se tocam necessariamente a Filosofia e a Teologia, quando estas se mantêm fiéis à sua intenção. É a questão de como o homem se salva, de como se justifica.
No passado, pensou-se de preferência na morte e naquilo que vem depois da morte; hoje o mais além é visto como algo incerto, e portanto continua sendo excluído das questões atuais. Por isso é necessário continuar buscando o que é reto e justo no tempo: não se pode preterir o problema de como se deve enfrentar a morte. Curiosamente, no debate sobre a relação do Cristianismo com as religiões universais, o ponto de discussão que vem sendo mantido é o de como se relacionam as religiões e a salvação eterna.
A questão sobre como o homem pode salvar-se ainda vem sendo debatida em moldes clássicos. Ultimamente, porém, vem-se impondo de modo bastante geral esta tese: todas as religiões são caminhos de salvação. Talvez não o caminho ordinário, mas ao menos caminhos “extraordinários” de salvação: por todas as religiões se chegaria à salvação. É essa a visão habitual.
Semelhante tese não corresponde apenas à idéia da tolerância e do respeito pelos outros que hoje nos é imposta. Corresponde também à imagem moderna de Deus: Deus não pode rejeitar homem algum apenas porque não conhece o cristianismo e, em conseqüência, cresceu em outra religião. Aceitará a sua vida religiosa da mesma forma que faz com a nossa.
Embora esta tese – reforçada nos últimos tempos com muitos outros argumentos – seja bastante clara à primeira vista, não deixa de suscitar dúvidas. Pois as religiões particulares não exigem apenas coisas diferentes, mas também coisas opostas. Diante do número crescente de homens não vinculados ao religioso, esta teoria universal da salvação estendeu-se também a formas de existência não religiosas, mas vividas de maneira coerente. Sendo assim, atitudes contraditórias conduziriam à mesma meta. Em poucas palavras, estamos novamente diante do relativismo. Pressupõe-se sub-repticiamente que, no fundo, todos os conteúdos são igualmente válidos. Não sabemos o que vale realmente.
Cada um tem de percorrer o seu caminho, ser feliz à sua maneira, como dizia Frederico II da Prússia. Assim, galopando nas teorias da salvação, o relativismo torna a entrar sub-repticiamente pela porta traseira: a questão da verdade é separada da questão das religiões e da salvação. A verdade é substituída pela boa intenção; a religião mantém-se no plano subjetivo, porque não se pode conhecer aquilo que é objetivamente bom e verdadeiro.
a) A diferença entre as religiões e seus perigos
Temos que conformar-nos com isso? É inevitável a alternativa entre o rigorismo dogmático e o relativismo humanitário? Penso que as teorias aqui analisadas não pensaram suficientemente três coisas. Em primeiro lugar, as religiões (e agora também o agnosticismo e o ateísmo) são consideradas iguais. Mas com certeza isto não é assim. Com efeito, há formas de religião degeneradas e doentias, que não elevam o homem, mas o alienam: a crítica marxista da religião não carecia totalmente de base. Também as religiões com uma certa grandeza moral, e que estão a caminho da verdade, podem estar doentes em alguns pontos. No hinduísmo (que mais propriamente é um nome coletivo para diversas religiões), há elementos grandiosos, mas também aspectos negativos: por exemplo o entrelaçamento com o sistema de castas, a prática da queima de viúvas – que se formou a partir de representações inicialmente simbólicas -, bem como as aberrações do shaktismo (*), para mencionar apenas uns poucos exemplos. Também o Islã, com toda a grandeza que representa, está continuamente exposto ao perigo de perder o equilíbrio, de dar espaço à violência e deixar que a religião deslize para o ritualismo externo.
E naturalmente há também, como todos nós bem sabemos, formas doentias no cristianismo. Assim aconteceu quando os cruzados, na conquista da cidade santa de Jerusalém, em que Cristo morreu por todos os homens, mergulharam muçulmanos e judeus num banho de sangue. Isto significa que a religião exige discernimento, discernimento em relação às formas das religiões e discernimento no interior da própria religião, conforme o seu próprio nível.
Com o indiferentismo quanto aos conteúdos e às idéias – todas as religiões, embora distintas, seriam iguais -, não se pode avançar. O relativismo é perigoso, tanto para a formação do ser humano individualmente como em comunidade. A renúncia à verdade não cura o homem. Não se pode esquecer o enorme mal que se fez na História em nome de opiniões e intenções boas.
b) A questão da salvação
Tocamos já o segundo ponto costumeiramente deixado de lado. Surpreendentemente, quando se fala do significado salvífico das religiões, pensa-se, na maioria das vezes, apenas em que todas possibilitariam a vida eterna, o que acaba neutralizando o pensamento da vida eterna, pois todo o mundo chegaria a ela de uma forma ou de outra. Contudo, isso rebaixa de maneira inconveniente a questão da salvação.
O céu começa na terra. A salvação no além pressupõe uma vida correspondente no aquém. Não podemos, pois, perguntar-nos apenas quem vai para o céu e desentender-nos simultaneamente da questão do céu. É necessário perguntar o que é o céu e como vem à terra. A salvação do além deve refletir-se numa forma de vida que torne o homem humano no aquém, isto é, neste mundo, e portanto conforme com a vontade de Deus. Uma vez mais, isto significa que, na questão da salvação, é preciso olhar para além das próprias religiões, para um horizonte ao qual pertencem as regras de uma vida reta e justa, regras que não podem ser relativizadas arbitrariamente. Eu diria, pois, que a salvação começa com a vida reta e justa do homem neste mundo, que abarca sempre os dois pólos: o indivíduo e a comunidade.
Há formas de comportamento que nunca podem servir para tornar reto e justo o homem, e outras que sempre pertencem ao ser reto e justo do homem. Isto significa que a salvação não está nas religiões como tais, mas depende também de até que ponto elas levam os homens à Deus, à verdade e ao bem. Por isso, a questão da salvação traz sempre consigo um elemento de crítica religiosa, embora também possa aliar-se positivamente com as religiões. Em qualquer caso, tem a ver com a unidade do bem, com a unidade do verdadeiro, com a unidade de Deus e do homem.
c) A consciência e a capacidade do homem para a verdade
A unidade do homem tem um órgão: a consciência. Foi uma ousadia de São Paulo afirmar que todos os homens têm a capacidade de escutar a sua consciência, separando assim a questão da salvação da questão do conhecimento e da observância da Torah, e situando-a no terreno da comum exigência interior em que o Deus único fala e diz a cada um o que é verdadeiramente essencial na Lei: Quando os gentios, que não têm lei, cumprem naturalmente as prescrições da lei, sem ter lei são lei para si mesmos, demonstrando que têm a realidade dessa lei escrita no seu coração, segundo o testemunho da sua consciência… (Rom 2, 14 e segs.). Paulo não diz: “Se os gentios se mantiverem firmes na sua religião, isso é bom diante do juízo de Deus”. Pelo contrário, ele condena grande parte das práticas religiosas do seu tempo. Remete para outra fonte, para aquela que todos trazem escrita no coração, para o único bem do único Deus.
Enfrentam-se hoje dois conceitos contrários de consciência neste ponto, que na maioria das vezes simplesmente se intrometem um no outro. Para Paulo, a consciência é o órgão da transparência do único Deus em todos os homens, que são um só homem. Mas, atualmente, a consciência aparece como expressão do caráter absoluto do sujeito, acima do qual não poderia haver, no campo moral, nenhuma instância superior. O bem como tal não seria cognoscível. O Deus único não seria cognoscível. No que diz respeito à moral e à religião, a última instância seria o sujeito. Isso seria lógico, se a verdade como tal fosse inacessível.
Assim, o conceito moderno de consciência equivale à canonização do relativismo, da impossibilidade de haver normas morais e religiosas comuns, ao passo que, pelo contrário, para Paulo e para a tradição cristã, a consciência sempre foi a garantia da unidade do ser humano e da cognoscibilidade de Deus, e portanto da obrigatoriedade comum de um mesmo e único bem. O fato de em todos os tempos ter havido e haver santos pagãos baseia-se em que em todos os lugares e em todos os tempos – embora muitas vezes com grande esforço e apenas parcialmente – a voz do coração era perceptível; a Torah de Deus se nos fazia perceptível como obrigação dentro de nós mesmos, no nosso ser criatural, e desse modo tornava possível que superássemos a mera subjetividade na relação de uns com os outros e na relação com Deus. E isto é a salvação.
Resta saber o que Deus faz com os pobres fragmentos do nosso caminho rumo ao Bem, rumo a Ele mesmo e ao Seu mistério: um caminho que não deveríamos pretender controlar.
CONCLUSÃO
Ao final destas minhas reflexões, quisera chamar novamente a atenção sobre uma indicação metodológica dada pelo Papa para as relações entre a Teologia e a Filosofia, entre a Fé e a razão, porque com ela se toca a questão prática de como se pode pôr em andamento, no sentido em que fala a Encíclica, uma renovação do pensamento filosófico e teológico. A Encíclica fala de um movimento circular entre a Teologia e a Filosofia, entendendo-o no sentido de que a Teologia tem que partir sempre em primeiro lugar da Palavra de Deus; mas, posto que essa Palavra é verdade, é preciso relacioná-la com a busca humana da verdade, com a luta da razão pela verdade, pondo-a assim em relação com a Filosofia.
A busca da verdade por parte de quem crê realiza-se, pois, num movimento em que sempre se confrontam a escuta da Palavra proclamada e a busca da razão. Desse modo, por um lado, a Fé se torna mais profunda e mais pura; por outro, o pensamento também se enriquece, porque se abrem para ele novos horizontes. Parece-me que essa idéia de circularidade pode ser ampliada ainda mais: a própria Filosofia não deveria fechar-se naquilo que lhe é meramente próprio e pensado por ela. Assim como tem que estar atenta aos conhecimentos empíricos, que se amadurecem nas diversas ciências, assim também deveria considerar a sagrada tradição das religiões, e especialmente a mensagem da Bíblia, como fonte de conhecimentos capazes de fecundá-la.
De fato, não há nenhuma grande filosofia que não tenha recebido da tradição religiosa luzes e orientações: pensemos na filosofia da Grécia ou da Índia, ou na filosofia que se desenvolveu no âmbito do cristianismo. Também vale o mesmo para as filosofias modernas, que embora estivessem convencidas da autonomia da razão e considerassem essa autonomia como critério último do pensar, mesmo assim mantiveram-se devedoras dos grandes temas do pensamento que a Fé cristã foi dando à Filosofia: Kant, Fichte, Hegel e Schelling não seriam imagináveis sem os antecedentes da Fé. Até mesmo Marx, no coração da sua radical reinterpretação, vive do horizonte de esperança assumido pela tradição judaica.
Quando a Filosofia apaga totalmente esse diálogo com o pensamento da Fé, acaba – como já disse uma vez Jaspers – numa “seriedade que se vai esvaziando, até ficar sem conteúdo”. Por fim se vê impelida a renunciar à questão da verdade, e isso significa dar-se a si mesma por perdida: uma filosofia que já não pergunta mais quem somos, para que somos, se existe Deus e a vida eterna, abdicou como filosofia.
Quero concluir com a menção de um comentário à Encíclica publicado no semanário alemão Die Zeit, cuja tendência é distanciar-se das posições da Igreja. O comentarista Jan Ross sintetiza com muita precisão o núcleo da Encíclica ao dizer que o destronamento da Teologia e da Metafísica “não somente tornou o pensamento mais livre, mas também mais estreito”. Sim, Ross não receia falar de um “emburrecimento por descrença”. “Quando a razão se afastou das questões últimas, tornou-se apática e tediosa, deixou de ser capaz de lidar com os enigmas vitais do bem e do mal, da morte e da imortalidade. A voz de João Paulo II – continua o comentarista – deu ânimo a muitos homens e a povos inteiros; também soou dura e cortante aos ouvidos de muitos, e até suscitou ódio, mas, se emudecer, far-se-á um terrível silêncio”.
Com efeito, se deixamos de falar de Deus e do homem, do pecado e da graça, da morte e da vida eterna, todo o grito e todo o ruído que houver será apenas uma tentativa inútil de fazer esquecer o emudecimento daquilo que é próprio do ser humano. O Papa fez frente ao perigo de um tal emudecimento, com a sua coragem e com a franqueza intrépida da Fé, prestando assim um serviço não somente à Igreja, mas a toda a Humanidade. E devemos agradecer-lhe por isso.
Joseph Ratzinger

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