É fundamental esclarecermos nossas definições de fé e de razão, porque esses termos geralmente são usados de maneira vaga ou equivocada. Ao defini-los, distinguindo o significado de cada termo, removemos a indeterminação e evitamos os equívocos.
1.1.FéPrimeiro, precisamos distinguir o ato de crer do objeto da fé, separando a crença daquilo em que cremos.
- O objeto da fé é tudo aquilo em que cremos. Para os cristãos evangélicos, isso engloba tudo que Deus revelou na Bíblia. Esse objeto de fé é expresso por proposições que nos permitem entrever não a fé, mas o objeto da fé. Os atos litúrgicos e morais, por exemplo, são proposições que exprimem em que cremos. Entretanto, não são os objetos derradeiros da fé; são apenas objetos secundários. O objeto derradeiro da fé é apenas um: a Palavra de Deus, o próprio Deus. As proposições são o “mapa”, a estrutura da fé. Deus é o objeto real da fé e também o Autor da fé — o que revela as doutrinas objetivas em que cremos, bem como Aquele que inspira o coração do ser humano que escolhe livremente acreditar nelas.
É errado parar no nível das proposições e não deixar nossa fé alcançar o Deus vivo, bem como denegrir as proposições, considerando-as dispensáveis ou até mesmo nocivas à fé viva. Sem um relacionamento real com o Deus vivo, as proposições são inúteis, porque o objetivo delas é apontar para além de si próprias e revelar Deus. (“Um dedo é útil para apontar para a lua, mas ai daquele que confunde o dedo com a lua”, diz um sábio provérbio.) Entretanto, sem as proposições, não podemos permitir que outros vislumbrem o Deus em quem acreditamos e o que cremos a respeito dele.
- O ato da fé é mais do que um mero ato de crer. Acreditamos em muitas coisas — por exemplo, que determinado time de futebol irá ganhar o jogo, que o presidente não é um mau caráter, que a Noruega é um belo país — entretanto, não estamos dispostos a morrer por essas crenças e não podemos vivê-las a cada momento. Entretanto, a fé religiosa tanto pode estimular-nos a morrer em prol do que cremos como a viver a cada instante. A fé religiosa é muito mais do que um mero ato de crer; é muito mais forte. Mas o simples ato de crer faz parte da fé e é um de seus aspectos.
Podemos distinguir pelo menos quatro aspectos ou dimensões da fé religiosa. Em uma hierarquia—da menos importante para a mais importante e essencial, e da mais externa para a mais interna, ou seja, conduzindo a aspectos cada vez mais centrais ao ser humano —, podemos caracterizá-las como (a) fé emocional, (a) fé intelectual, (c) fé volitiva e (d) fé no íntimo.
- A fé emocional é a sensação de segurança ou de confiança em uma pessoa. Isso inclui a esperança (que é muito mais forte do que um mero desejo) e a paz (que é muito mais intensa do que uma simples tranquilidade no íntimo).
- A fé intelectual é a crença. Esta é mais forte do que a fé emocional por ser mais estável e imutável, como uma âncora. Minha mente pode crer embora meus sentimentos estejam abalados. Essa crença, porém, é muito mais rigorosa, diferente de uma mera opinião. A antiga definição de fé intelectual era “um ato do intelecto, estimulado pela vontade pessoal, pelo qual acreditamos em tudo que Deus revelou, com base na autoridade do Senhor”. É esse aspecto da fé que está formulado nas proposições e resumido nos credos.
- A fé volitiva é um ato da vontade humana, o compromisso de obedecer à vontade de Deus. Isso é o que chamamos de fidelidade. Ela se manifesta no comportamento, ou seja, através das boas obras. Uma esperança mais profunda que um mero desejo é fundamental para a fé emocional, e uma crença mais profunda do que uma simples opinião é fundamental para a fé intelectual. Portanto, um amor mais profundo do que o comum é a base da fé volitiva. A raiz dela — a vontade pessoal — é a faculdade ou o poder da alma que está mais próximo da raiz pré-funcional do coração (d). O intelecto é o navegador da alma, mas a vontade é seu capitão. O intelecto é como o Sr. Spock, da série Jornada nas Estrelas. A vontade é como o Capitão Kirk, e os sentimentos são como o Dr. McCoy, o médico da equipe. A alma é como a nave Enterprise. A vontade pode ordenar o intelecto a pensar, mas este não pode forçar a vontade a tomar uma atitude, apenas tem a capacidade de informá-la, assim como o navegador diz ao capitão o que se passa com a nave. Entretanto, a vontade não pode simplesmente nos forçar a crer. Ela não pode exigir que o intelecto acredite no que aparenta ser falso ou deixar de crer naquilo que parece ser verdadeiro. A crença se manifesta quando decidimos agir com sinceridade e aplicar nossa mente a serviço da verdade. (Ver Aquino, Suma Teológica, I, 82, 3-7 sobre o relacionamento entre o intelecto e a vontade.)
- A fé salvadora tem início naquele centro misterioso e obscuro de nosso ser que as Escrituras chamam de coração. Na Bíblia (e de acordo com os pais da igreja, principalmente Agostinho), esse termo não significa sentimentos ou emoções, mas o centro absoluto da alma, assim como coração, órgão, está no centro do corpo. O coração é a parte de nós onde o Espírito Santo de Deus atua. O coração não é uma espécie de objeto interior, com as emoções, o intelecto ou a vontade. É o próprio ser, o eu, o sujeito constituído por emoções, mente e vontade.
Salomão nos instruiu: Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as saídas da vida (Pv4,23). Com o coração, assumimos a postura fundamental de dizer sim ou não a Deus, e escolhemos nossa identidade e nosso destino eterno. No entanto, a fé intelectual sozinha não é suficiente para a salvação, pois até os demônios crêem.
e estremecem (Tg 2,19). A esperança e, acima de tudo, o amor precisam ser acrescidos à/é (1 Co 13,13). Esta fé no íntimo é uma fé salvadora — ela promove a salvação, e necessariamente produz as boas obras do amor, assim como uma árvore saudável produz bons frutos.
1.2. Razão
Novamente precisamos distinguir entre o ato pessoal e subjetivo da razão e o objeto da razão.
Novamente precisamos distinguir entre o ato pessoal e subjetivo da razão e o objeto da razão.
- O objeto da razão engloba tudo aquilo que a razão pode conhecer. Isso inclui três categorias correspondentes aos “três atos da mente” na lógica clássica aristotélica. Isso significa que qualquer verdade pode ser: (a) compreendida pela razão (ou seja, pela razão humana, sem a fé na revelação divina); (b) descoberta pela razão humana como verdadeira; (b) provada de maneira lógica, sem nenhuma premissa baseada em fé na revelação divina.
a. Podemos compreender, por exemplo, de que material é feita uma estrela apenas através da razão humana, e isso não é parte da revelação divina. Também podemos compreender por que o universo é tão bem ordenado. A razão humana nos diz que deve haver uma inteligência sobre-humana por trás da criação do universo. Esse segundo exemplo está citado na revelação divina, enquanto o primeiro não. Além disso, podemos compreender qual é o plano de Deus para a salvação da humanidade apenas através da razão humana ou apenas através da revelação divina.
b. Com relação ao segundo “ato da mente”, lembramos que podemos saber que o planeta Plutão existe apenas através da razão humana. Isso não é parte da revelação divina. Também podemos descobrir a existência histórica de Jesus apenas utilizando a razão, com base em pesquisas históricas. Esta última verdade está incluída na revelação divina, enquanto que a primeira não está. Entretanto, não podemos descobrir apenas pela razão que Deus nos ama de tal maneira que deu Seu Filho para morrer por nós. Só podemos saber disso pela fé na revelação divina.
c. Por fim, podemos provar, por exemplo, o teorema de Pitágoras apenas pela razão humana, pois este não consta da revelação de Deus. Também só pela razão podemos provar que a alma não morre com o corpo. Isto é possível usando bons argumentos filosóficos. Essa doutrina também está incluída na revelação divina. Entretanto, não podemos provar que Deus é trino; podemos apenas crer, porque Ele nos revelou essa verdade.
2.0 ato da razão, distinto do objeto da razão, inclui todos os atos pessoais e subjetivos da mente através dos quais (a) compreendemos, (b) descobrimos e (c) provamos qualquer verdade.
O significado antigo de razão incluía todos os três “atos da mente”, chamados no conceito clássico de (a) simples apreensão, (b) julgamento e (c) raciocínio. Entretanto, o significado de razão foi sendo estreitado na era moderna, começando com o nominalismo de Ockham, no século XIV, e com o racionalismo de Descartes, no século XVII, passando a significar apenas o “terceiro ato da mente”, o raciocínio, os cálculos e as provas intelectuais. Neste livro, preferimos utilizar o significado mais antigo e mais amplo de razão.
A razão está relacionada à verdade, pois é uma maneira de conhecer a verdade, de compreendê-la, de descobri-la e de prová-la.
Semelhantemente, a fé está relacionada à verdade; pois também é uma maneira de descobri-la. Nenhum ser humano existe sem algum tipo de fé. Todos nós adquirimos a maior parte de nosso conhecimento através da fé, ou seja, por crermos no que outras pessoas — pais, professores, amigos, escritores, a sociedade — nos dizem. Externamente à religião e também através dela, a/é e a razão são estradas que levam à verdade.
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