INTRODUÇÃO
Tanto no Oriente como no Ocidente, a prática de batizar as crianças é considerada uma norma de tradição imemorial. Orígenes e, mais tarde, Santo Agostinho consideravam-na uma "tradição recebida dos Apóstolos».[1] Quando no século II aparecem os primeiros testemunhos diretos, jamais algum deles apresenta o Batismo das crianças como uma inovação. Santo Irineu, de modo particular, considera óbvia a presença entre os batizados “das crianças e dos pequeninos”, ao lado dos adolescentes, dos jovens e das pessoas adultas.[2] O mais antigo ritual conhecido, aquele que descreve, no início do século III, a Tradição Apostólica, contém a prescrição seguinte: “Batizar-se-ão em primeiro lugar as crianças; todas aquelas que podem falar por si mesmas que falem; quanto às que não podem fazê-1o, os pais ou alguém da sua família devem falar por elas”.[3] São Cipriano, estando num Sínodo com os Bispos da África, afirmava que “não se pode negar a misericórdia e a graça de Deus a nenhum homem que vem à existência”; e esse mesmo Sínodo, recordando “a igualdade espiritual” de todos os homens, seja qual for a “sua estatura ou idade”, decretou que se podiam batizar as crianças “já a partir do segundo ou terceiro dia após o seu nascimento”[4] (Pastoralis Actio).
A “CONTROVÉRSIA”
Tendo em vista que Tertuliano recomendava o adiamento do batismo de crianças, muitos protestantes tentam levantar, com isso, um ponto supostamente contraditório na Tradição Apostólica, como se houvesse certa dissensão entre os Padres, ao tratar sobre batismo infantil. A citação utilizada por eles é:
“(...) E então, de acordo com as circunstâncias e disposição, e até mesmo a idade, o adiamento do batismo é preferível, principalmente, contudo, no caso de crianças pequenas. Por que é necessário – se (o batismo em si) não é tão necessário – que os padrinhos sejam colocados em risco? Ambos, devido ao perigo de perecerem, podem não conseguir cumprir suas promessas e podem ficar decepcionados com o desenvolvimento de uma má disposição naqueles que estavam de pé? O Senhor, de fato, diz: “Não as impeçais de vir a mim”. Deixai-as vir, então, enquanto estiverem crescendo; venham elas enquanto estiverem aprendendo, enquanto estiverem aprendendo para onde ir. Deixai-as tornarem-se cristãs quando forem capazes de conhecerem a Cristo. Por que apressar a remissão dos pecados para o período da inocência? Mais cuidado deve ser tomado em assuntos mundanos: de modo que um que não seja dado a questões terrenas seja confiado às divinas! Deixe eles saberem como pedir pela salvação, para que você não pareça (ao menos) ter dado a ele que pede. (...) Se alguém entender a pesada importância do batismo, eles temerão sua recepção mais do que seu atraso: fé livre de erros é a garantia de salvação. (...)” (De baptismo, 18)
Mas será mesmo que Tertuliano condenava o batismo infantil? O que levou Tertuliano a recomendar que o batismo fosse adiado? Será mesmo que recomendar que seja adiado é o mesmo que condenar? Analisemos o contexto da época em que Tertuliano estava inserido, para ver se realmente há uma dissonância entre a prática do batismo infantil e o adiamento da mesma, recomendada por Tertuliano.
A DISCIPLINA DA IGREJA
A fim de entender a razão de Tertuliano fornecer esta prescrição, temos que analisar dois fatores que influenciaram-na: a “pesada importância do batismo”e também outro fator que está intimamente ligado a esta grande importância do sacramento do batismo: a disciplina do sacramento da penitência, da época de Tertuliano.
Para demonstrar a importância do “sacramento da água” (De bapt., 1) para Tertuliano, vemos que ele diz no capítulo 12 da referida obra: “sem batismo, a salvação não é atingível por ninguém.”. Ótimo! Já sabemos que para ele o batismo não era um mero símbolo, mas algo decisivo e necessário à salvação do indivíduo. Bem, Tertuliano também afirma no capítulo 7 que “somos mergulhados na água, mas o efeito é espiritual, nele [no batismo] somos limpos do pecado” afirmando, com isso, que cria numa eficácia operada neste sacramento.
Oras, o que isso então tem a ver com a postura de adiar o batismo de crianças? Tudo. E é agora que entra em cena o outro fator levantado para explicar esta atitude de Tertuliano: o sacramento da penitência. Vemos que nosso protagonista indagou: “por que apressar a remissão dos pecados para o período da inocência?”. Oras, uma vez que ele cria que no sacramento do batismo somos limpos do pecado, nesta indagação Tertuliano demonstra não achar necessário conferir a remissão dos pecados a criaturas inocentes e que só contam com a mancha do pecado original [5]. Mas então, qual a razão de agir desta forma? Onde entra o sacramento da penitência?
Relaciona-se mais precisamente com a disciplina que a Igreja ocidental aplicava a este sacramento. Para Tertuliano, a penitência era oferecida apenas uma vez na vida, àquelas pessoas que, após o batismo cometeram pecados graves:
“(...) Prevendo estes venenos do maligno, Deus, embora as portas do perdão estivessem seladas e fixadas com a barra do batismo , tem permitido ainda que elas permaneçam um pouco abertas. No vestíbulo, ele tem disposto um segundo arrependimento para [as portas do perdão]serem abertas com a batida. Mas de uma vez por todas [será aberta] por agora, uma segunda vez. Mas nunca mais [será], porque a primeira vez tinha sido em vão... No entanto, se houver [a necessidade] de incorrer na dívida de um segundo arrependimento, não é para seu espírito ser imediatamente cortado e minado por desespero. Que seja difícil para pecar, mas não seja difícil se arrepender de novo. (...)” (De Paenitentia, 7) [colchetes meus]
Os patrologistas Altaner e Stuiber, comentando esta obra de Tertuliano, dizem o mesmo:
“(...) A doutrina relativa à penitência. Em sua obra “De paenitentia”, Tertuliano concita a todos os pecadores à penitência eclesiástica, admissível uma só vez e não reiterável. (...)”(Patrologia: vida, obras e doutrina dos Padres da Igreja / 2.ed. Berthold Altaner, Alfred Stuiber; (tradução Monjas Beneditinas) – São Paulo: Paulinas, 1988, p. 169).
E também, pela disciplina da penitência ser dura (OTT, 1966), ele recomendava que ela fosse evitada:
“(...) Oh Jesus Cristo, meu Senhor, concede aos teus servos a graça de conhecer e aprender com a minha boca a disciplina da penitência, mas enquanto lhes convém e não para o pecado, em outras palavras, que depois (do batismo) não tenham que conhecer a penitencia e nem pedi-la. Odeio mencionar aqui a segunda, ou por melhor dizer, neste caso, a última penitência. Temo que, ao falar de um remédio da penitência que se tem em reserva, parece sugerir que existe, todavia, um tempo em que se pode pecar. Deus me livre alguém interprete mal meu pensamento, fazendo-os dizer que com esta porta aberta a penitência existe, portanto, agora uma porta aberta ao pecado. (...) Temos escapado uma vez (no batismo). Não vamos entrar mais em perigo, mesmo que nos pareça que ainda escaparemos outra vez. (...)” (De paenitentia, 7).
Como se sabe, a penitência (ἐξομολόγησις) era humilhante, além de rígida, podendo durar por toda a vida, ou algumas semanas dependendo da região (AUER, 1983), para que então a absolvição fosse dada. Explico: na antiguidade, exceto em perigo de morte, o comum era depois da confissão, cumprir a satisfação (penitência) antes de receber a absolvição dos pecados pelo sacerdote (OTT, 1966). Isso gera dificuldades para que o penitente recebesse absolvição, pelos longos períodos que muitas vezes era submetido à satisfação, que poderia resultar em não encontrar novamente o sacerdote com o qual se confessou para receber a absolvição. Além de ser usual, no ocidente até por volta do século VIII, só ser possível conferir o sacramento da penitência apenas uma vez (FUNK, 1905).
Levando então em consideração o que foi dito acima, evidencia-se o motivo prático e pastoral de Tertuliano falar de adiar o batismo de crianças: havendo uma só possibilidade de reconciliação após o batismo, na visão de Tertuliano era bom que se adiasse o batismo, para que o indivíduo já com uma “fé livre de erros”, pudesse ter seus pecados lavados no batismo e com esta consciência, “não tenha que conhecer a penitência e nem pedi-la”, uma vez que era aplicada somente uma vez na vida, com humilhantes e prolongadas práticas penitenciais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Respondendo às perguntas iniciais: Tertuliano condenava o batismo infantil? Não, não condenava. A esta pergunta responde também J. N. D. Kelly:
“(...) Tertuliano leva-nos um passo adiante. Ele sustenta que o batismo (De bapt. 1; 12-15) é necessário à salvação; seguindo o exemplo de Cristo, nascemos na água e só podemos ser salvos permanecendo nela. Ele é ministrado a crianças, embora Tertuliano pessoalmente prefira (De bapt., 18) que seja adiado até chegarem à idade do discernimento. (...)” (Kelly, J.N.D. Patrística: origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã / J.N.D. Kelly; Tradução Márcio Loureiro Redondo - São Paulo : Vida Nova, 1994. p. 157)
Como vemos, apesar de preferir que o batismo seja adiado, ele pode também ser administrado às crianças. E, uma vez que ele diz que “de acordo com as circunstâncias” o batismo pode ser adiado, igualmente pode ser conferido, como por exemplo, em casos de risco de vida, já que ensinou o batismo é necessário à salvação. Oras, é o que também sustentam Altaner e Stuiber ao ler Tertuliano:
“(...) Tertuliano ensina em 'De Anima' 41, ser o pecado original 'vitium' originis': em consequência do pecado de Adão, o veneno da concupiscência contaminou a natureza humana; o 'vitium originis', por ação demoníaca, se tornou um 'naturale quodammodo'. Não obstante, não aconselha o batismo das crianças, exceto em caso de emergência (bapt. 18). (...)” (Patrologia: vida, obras e doutrina dos Padres da Igreja / 2.ed. Berthold Altaner, Alfred Stuiber; (tradução Monjas Beneditinas) – São Paulo: Paulinas, 1988, p. 169).
Como vimos, foram motivações práticas e pastorais, de acordo com a disciplina da Igreja norte-africana daquela época, que motivaram Tertuliano a preferir o adiamento do batismo (é por isso que ele fala que “o batismo em si não é tão necessário”), para que o indivíduo pudesse ter mais oportunidades de viver uma fé livre de erros com uma vida em santidade, sem precisar recorrer à rígida prática penitenciária de seu tempo.
Embora ele tivesse suas razões em optar por esta prática, para todos os Padres da Igreja que se pronunciaram sobre a questão ele não tinha razão, e fazia-se necessário o batismo de crianças. Por exemplo, Santo Agostinho, que foi deixado para ser batizado tardiamente, queixou-se de não ter sido batizado quando criança, pois assim receberia logo a cura:
“(...) Rogo-te, meu Deus, que me mostres — se nisso consentes — por qual desígnio foi adiado o meu Batismo (...) Quanto teria sido preferível para mim ser logo curado e esforçar-me, eu e os meus, para conservar intacta a saúde da minha alma, sob a proteção que me terias dado! Sem dúvida teria sido melhor. (...)” (Confissões, I, 11)
Vale ressaltar que além de Agostinho, Padres e Doutores, como um São Basílio, um São Gregário de Nissa, um Santo Ambrósio, um São João Crisóstomo, um São Jerónimo — que também tinham sido eles próprios batizados na idade adulta, em virtude deste estado de coisas — reagiram em seguida vigorosamente contra uma tal negligência, pedindo com insistência aos adultos para não retardarem o batismo, necessário para a salvação,[6] e muitos de entre eles insistiram igualmente para que o mesmo fosse administrado também às criancinhas.[7]
Logicamente, se Tertuliano considerar A melhor que B, não é o mesmo que –condenar– B. E é isso que o texto demonstrou: a compatibilidade da posição de Tertuliano, neste aspecto, com a doutrina da Igreja: apesar de não ser uma orientação pastoral que coincida com o ensino dos demais Padres, para Tertuliano era perfeitamente possível o batismo de crianças, mesmo que sendo uma exceção, pois sua doutrina acerca da necessidade e do efeito do batismo, registradas em seu tratado sobre o batismo, foram absolutamente católicas.
NOTAS
[1] Orígenes, In Romanos lib. V. 9, PG 14, 1047; cf. S. Agostinho, De Genesi ad litteram, X, 23, 39, PL 34, 426; De peccatorum meritis et remissione et de baptismo parvulorum I, 26, 39, PL 44, 131. Na verdade, já em três passagens dos Actos dos Apóstolos (Act 16, 15; Act16, 33; Act 18, 8), se lê que foi baptizada "toda uma casa de família".
[2] Adv. Haereses II, 24, 4, PG 7, 184, Harvey I, 330. Em muitos documentos epigráficos, já desde o século II, muitas crianças são designadas "filhas de Deus", título que só era concedido aos baptizados, ou se fala mesmo do Baptismo delas expressamente; cf. por exemplo, Corpus inscriptionum graecarum, III, nn. 9727, 9801, 9817; E. Diehl,Inscriptiones christianae latinae veteres, Berlin, 1961, nn. 1523 (3), 4429 A.
[3] Hipólito de Roma, La Tradition Apostolique, ed. e trad. de B. Botte, Münster W., Aschendorff, 1963 (Liturgiewiessenschaftliche Quellen und Forschungen 396) pp. 44-45.
[4] Epist. LXIV, Cyprianus et coeteri collegae, qui in concilio adfuerunt numero LXVI Fido fratri, PL 3, 1013-1019, ed. Hartel, CSEL 3, pp. 717-721. Tal prática estava particularmente firmada na Igreja africana, não obstante a oposição de Tertuliano, o qual aconselhava adiar para mais tarde o Batismo das crianças, por causa de sua tenra idade e por causa do temor de eventuais defecções, no período da juventude. Cf. De baptismo, XVIII, 3; XIX, 1, PL 1, 1220-1222; De anima, 39-41, PL 2, 719 e ss.
[5] Sobre a fé de Tertuliano no pecado original, vemos em "De testimonio animae" 3,2
[6] Cf. S. Basílio, Homilia XIII exhortatoria ad sanctum baptisma, PG 31, 424436; S. Gregório de Nissa, Adversus eos qui differunt baptismum oratio: PG 46, 2; S. Agostinho, In Joannem tract. XIII, 7: PL 35, 1496, CCL 36, p. 134.
[7] Cf. S. Ambrósio, De Abraham II, 11, 81-84, PL 14, 495497, CSEL 32, 1, pp. 632-635; S. João Crisóstomo, Catechesis III, 5-6, ed. A. Wenger, SC 50, pp. 153-154; S. Jerónimo, Epist. 107, 6: PL 32, 873, ed. J. Labourt (Coll. Budé), t. 5, pp. 151-152. Todavia São Gregório de Nazianzo, muito embora faça pressão sobre as mães para mandarem baptizar os seus filhos de tenra idade, limita-se a fixar tal idade aos três anos. Cf. Oratio XL in sanctum baptisma,17 e 28, PG 36, 380 D e 399 A-B.
REFERÊNCIAS
Instrução da Congregação da Doutrina da Fé “Pastoralis Actio”, 20 de outubro de 1980 (Batismo de Crianças).
OTT, Ludwig. Manual de teología dogmática, Editorial Herder 1966, p. 617.
AUER, Johann. Los Sacramentos de la Iglesia. Vol. VII. Barcelona, 1983, p. 148-149.
OTT, Ludwig. Manual de teología dogmática, Editorial Herder 1966, p. 638.
FUNK, Franz Xavier von. Didascalia et Constitutiones Apostolicae, 1, Paderborn 1905, p 344-350.
PARA CITAR
OLIVEIRA, L.H. Tertuliano é uma prova contra o batismo infantil? Disponível em: Desde: 07/08/2015.
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