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domingo, 6 de fevereiro de 2011

A Moralidade no Antigo Testamento ( II ) - EB Parte 3

Quando, pois, a bigamia é introduzida na Escritura, o autor sagrado lhe atribui uma nota pejorativa.

A linhagem dos setitas, fiéis a Deus (Gn 5, 1-32), assim como Noé, o justo salvo das águas (Gn 6-9), são monogâmicos. Precisamente o que caracteriza a corrupção antes do dilúvio é o irrefreado comércio matrimonial, talvez a poligamia (cf. Gn 6, 1-4).

De Abraão (ca. De 1800 a.C.; cf. Gn 12) em diante, porém, os homens, mesmo piedosos, têm freqüentemente (dir-se-ia : normalmente) mais de uma esposa.24

A praxe da poligamia foi finalmente reconhecida pela Lei mosaica em 1240 (cf. Dt 17, 17; 21, 15; Lv 18,18). Este dispositivo da Torá se explica por um ato de tolerância divina. À legislação matrimonial de Israel podem-se aplicar em globo as palavras de Jesus:

"Foi por causa da dureza do vosso coração que Moisés o permitiu: a princípio, porém, não era assim". (Mt 19,8)

Com efeito, no decorrer dos tempos a poligamia se tornara comum no antigo Oriente.25 Os hebreus, por conseguinte, eram, já pelo seu âmbito de vida, inclinados a seguir tal praxe. Ademais julgavam encontrar em sua concepção religiosa um estímulo possante para não se afastar do uso geral: os descendentes de Abraão estimavam, sim, que prole numerosa era sinal de bênção divina (pois, próxima ou remotamente, agregava o pai de família à linhagem do Messias), ao passo que esterilidade equivalia a maldição (cf. Is 63, 9 e Os 9, 14; Lc 1,25). Entende-se então que, no caso de ser infecunda a esposa, o varão hebreu procurasse unir-se a outra, a uma mulher livre ou a escrava da sua consorte (a prole da escrava era considerada pertencente à patroa).26
A largura tolerante de que assim dava provas a Lei mosaica era de certo modo compensada por restrições que a mesma formulava a respeito do uso do matrimônio; enumerava, sim, estados ou fases de "impureza legal" (os períodos de menstruação, doenças, etc.), nos quais os cônjuges eram obrigados a se abster do comércio matrimonial.27 É verdade que também outros povos conheciam tais restrições ou estados de "impureza"; todavia Moisés, ao sancioná-las oficialmente para Israel, queria levantar a mente do povo a um ideal que os pagãos estavam longe de conceber; reconhecendo usos comuns dos antigos povos, o Legislador hebreu lhes atribuía um significado mais nobre, apto a corrigir a dureza de coração da sua gente: deveriam ser observados em virtude de uma aspiração à pureza moral, interior, ou à santidade:

"Vós vos santificareis e sereis santos, porque sou santo e não vos tornareis impuros" (Lv 11,44), eis o que o Senhor recomendava após discriminar as impurezas legais.

Referindo-se a este texto bíblico, comenta Clamer:

"Tais prescrições (restritivas do matrimônio) (...), não implicavam necessariamente superstição degradante: o freio religioso sendo quase o único que impusesse respeito, o instinto racional mesmo sabia utilizá-lo para se defender contra os ímpetos do instinto animal; nos períodos mais perigosos da menstruação ou do parte, a mulher era colocada sob a tutela de um interdito religioso. Aliás, qualquer que tenha sido a origem dos costumes tradicionais promulgados pelo código mosaico, não será preciso dizer que, quando foram inseridos na legislação de Israel, já ninguém mais sabia o seu significado originário. Sendo expressão da vontade de Deus, esses usos tradicionais visavam assegurar a santidade do povo de Deus: "Vós vos santificareis e sereis santos, porque sou santo, diz o Senhor, e não vos tornareis impuros" (Lv 11,44).28

Na plenitude dos tempos, pelo Evangelho, a poligamia seria removida dos usos do povo de Deus, cedendo o lugar à monogamia inicial (cf. Mt 19, 4-6).

Divórcio

Eis outro elemento da antiga Lei que causa surpresa ao cristão: a praxe do divórcio.

Antes do mais, é importante notar que os textos bíblicos referentes ao divórcio não o instituem em Israel (como não instituem a poligamia), mas, supondo-o já em vigor, determinam as formalidades necessárias para o tornar legal e diminuir a sua frequência.

Exigia, sim, a Lei mosaica motivo serio - houvesse "algo de repugnante" na mulher - para que o marido a pudesse repudiar (cf. Dt 24,1). Tal exigência não ocorria, por exemplo, no Código de Hamurapi, o qual simplesmente rezava :

"Se um homem estiver disposto a repudiar uma concubina que lhe tiver procriado filhos, ou uma esposa que lhe tiver procriado filhos, ele restituirá a essa mulher o seu cheriqton (espécie de dote) (...)" (Art. 137).

Além disto, a Lei mosaica só ao marido reconhecia a iniciativa do divórcio; a mulher jamais a podia tomar. Também esta cláusula restritiva não figurava no Código de Hamurapi, onde se leem diversos motivos para que a mulher repudie o esposo; eis um entre outros artigos babilônicos:

"Se uma esposa é boa dona de casa, irrepreensível, e se o marido sai e muito a negligencia, essa mulher não tem culpa; pode tomar o seu cheriqton e ir-se para a casa de seu pai". (Art. 142)

Mais ainda: a legislação israelita permitia, sim, que a mulher repudiada contraísse novas núpcias; caso, porém, se casasse de novo, o seu primeiro marido nunca mais a poderia retomar por esposa (cf. Dt 24, 1-4; Jr 3,1). Também este dispositivo visava a restringir os divórcios, admoestando o marido a que não se separasse sem reflexão prévia. Fora de Israel, entre os árabes, por exemplo, o Corã permite que a mulher repudiada seja de novo recebida pelo marido, caso haja entrementes vivido com outro homem (condição justamente contrária à legislação mosaica)!

Por essas diversas restrições, a Lei israelita bem dava a entender quão pouco desejável é o divórcio numa sociedade que tenda à perfeição, chamada a ser o povo de Deus. Na plenitude dos tempos, as restrições cederiam à proibição formal (cf. Mt 19, 3-9).

ulteriores aspectos

Por fim, ainda parece oportuno observar:

Ao lado dos casos de poligamia, concubinato e divórcio reconhecidos pela Lei, houve, sem dúvida, na história sagrada, episódios que em hipótese alguma poderiam ser justificados; a fraqueza humana neles se manifestou, constituindo, como dissemos, o fundo negro sobre o qual mais havia de sobressair a graça da Redenção.
Tais episódios são entre outros:

O pecado de Onã (donde o nome do vício "onanismo"), que Deus puniu severamente, como refere Gn 38, 6-10;
O atentado incestuoso dos sodomitas, que foi devidamente castigado, conforme Gs 19, 1-25;

A conduta licenciosa de Salomão, que acarretou, como punição, o cisma do reino deste monarca (cf. 1Rs 11, 1-13, 29-33). De resto, a Lei admoestava particularmente o rei contra os abusos da poligamia (cf. Dt 17,17);

O feito das duas filhas de Lote, relatado em Gn 19, 30-38, poderia ser também julgado culpa grave, sem causar maior surpresa do que os episódios anteriores; as duas jovens teriam tido cópula carnal com seu pai! Apenas seria de notar que a narrativa faz de Lote uma vítima inconsciente, ludibriada, a quem não se pode imputar culpa no caso.29

Os exegetas recentes, porém, são inclinados a crer que o trecho refere não uma história real, mas o que se chama "uma narrativa etiológica", 29a cujo significado seria o seguinte: os moabitas e os amonitas eram povos vizinhos que, tendo-se oposto aos hebreus por ocasião do êxodo, haviam incorrido no ódio e no desprezo destes (cf. Dt 23, 3-7; Jr 48, 26; Ez 25, 1-11). Ora, para exprimir a animosidade, ter-se-ia formado em Israel uma narrativa fictícia: "Moab" (mê-ab) podia, conforme a etimologia, significar "Ele é do meu pai", "Amon" (bem-ammi) seria "Filho do meu pai". Pois bem, estes nomes no decorrer do tempo haveriam sido apresentados pela tradição israelita como os sinais de atos pecaminosos que teriam dado origem aos dois povos: duas filhas haveriam, sim, concebido de seu pai Lote, e gerado os homens a quem teriam imposto os nomes adequados" Ele é do meu pai" (Moab), "Filho do meu pai" (amon)30 Destes varões eram ditas proceder as duas nações inimigas ferrenhas de Israel, as quais assim ficavam bem caracterizadas como oriundas do pecado, impuras, gente com a qual não se podia ter amizade.31 A narrativa, portanto, exprimiria uma "história" imaginada para depreciar amonitas e moabitas. Eis como o Pe. Lagrange resume as razções que o levam a adotar esta explicação:

"O autor certamente não acreditava na historicidade do episódio, (...) quando narrava a origem incestuosa de Moab e Amon. A ironia é tão acerba, os trocadilhos tão artificiosos e cruéis que a tradição sabia muito bem como os devia entender; S. Jerônimo dizia dos rabinos do seu tempo, sem contra eles protestar: "Assinalam o trecho com pontinhos, para indicar que não merece fé". Abstração feita da finalidade do pontilhado, o sentido exégético é muito exato: uma sátira não é história".32

A interpretação assim concebida não é incompatível com a inspiração do texto sagrado. Com efeito, o hagiógrafo pode ter consignado no livros do Gênesis tradições populares, cujo significado era conhecido entre os judeus; inserindo o episódio de Gen 19, 30-38, o autor não fazia senão exprimir, nos termos mesmos em que isto se costumava fazer em Israel, a animosidade existente entre o seu povo e os adversários do seu povo. Não queria de modo nenhum apresentar como históricos os traços que não eram tidos como tais pela gente que os referia.

§ 5º MENTIRA E FRAUDE

A moral cristã ensina que jamais é lícito dar a entender o contrário do que se julga ser verdade, com a intenção de enganar o próximo. Todavia, esta norma, por depender de grande pureza de consciência, não era de todo clara aos homens anteriores a Cristo (nem aos pagãos nem aos israelitas), nem foi evidente a todos os cristãos desde o início da nossa era.33
Não é, pois, de admirar que na Sagrada Escritura se achem relatados casos de mentira até de homens e mulheres piedosos. Já que uma ou outra dessas históricas se torna, por vezes, motivo de debates, analisar-se-ão abaixo alguns episódios clássicos.

A fraudulência do Patriarca Jacó

Jacó, filho de Isaque, tem um nome que, segundo a etimologia popular hebraica (cf. Gn 27,36), é autêntico oráculo: o Suplantador.

Esta designação, de fato, o caracteriza na história sagrada.

Já ao nascer, saiu do seio materno segurando o calcanhar de irmão gêmeo Esaú, que o precedia e que, por isto, teria todos os direitos de filho mais velho (cf. Gn 25, 24-26).34 De resto, quando ainda gestava os dois gêmeos, Rebeca sentira que colidiam entre si no ventre materno, e fora por Deus advertida de que tal luta se prolongaria no decurso de sua vida, sendo que o mais velho acabaria por servir ao mais jovem (cf. 25, 22s).

Mais tarde, Jacó aproveitou-se da fadiga de seu irmão que voltava da caça e, em troca de um prato de lentilhas oportunamente oferecido a Esaú, comprou para si os direitos de primogênito (cf. 25, 29-34).

Antes da morte de Isaque, Jacó - de resto, instigado por sua mãe Rebeca - se apresentou ao pai débil e cego, dando-lhe a entender que era o filho mais velho Esaú; assim conseguiu enganar o pai e usurpar para si a bênção e primogênito, que o constituía herdeiro não somente dos haveres paternos, mas também das promessas divinas referentes ao povo do Messias (cf. 27, 1-45).

Após estas vitórias fraudulentas, Jacó se foi para a Mesopotâmia a fim de escolher esposa na família de seus ancestrais. Tendo-se fixado em casa de seu tio Labã, optou por Raquel, filha deste; todavia, só conseguiu obter o assentimento definitivo de Labã após haver sido explorado por este, prestando-lhe quatorze anos de serviço agrícola e pastoril (cf. 29, 1-30). Antes, porém, de regressar à sua terra com a família já constituída, Jacó se quis indenizar dos trabalhos que lhe foram extorquidos: aceitando uma oferta de Labã, resolveu levar consigo parte do gado de seu tio, parte aparentemente modesta, a saber: os cordeiros negros e as cabras malhadas que, para o futuro, nasceriam dos carneiros brancos e das cabras negras ou escuras de Labã (este, e não aquele, é o tipo normal e mais freqüente do gado). Todavia a modéstia de Jacó era ilusória: o "Suplantador" soube usar de um artifício habitual entre os criadores de gado primitivos, para que os carneiros brancos e as cabras não malhadas gerassem prole respectivamente negra e malhada, a qual lhe pertenceria.35 Assim Jacó se tornou rico à custa alheia (cf. 30, 25-43).

Ora foi esse homem tão fraudulento que Deus abençoou (...) Em vez de a repreender, dir-se-ia que o Senhor confirmou a violação de direitos que Jacó cometeu em sua vida.

Como se há de entender essa história?

Uma fase posterior da existência de Jacó nos leva à reta interpretação:

O hagiógrafo em Gn 32, 23-32 narra que, na caminhada de volta à Palestina, o Patriarca certa noite lutou contra um personagem misterioso que lhe aparecera; finalmente, o desconhecido confessou-se impotente, mas ainda quis tocar o nervo da anca de Jacó, tornando-o coxo; a seguir, pediu ao Patriarca que o deixasse partir. O "Suplantador" rogou-lhe então a bênção como condição para que o libertasse; em resposta, o estranho adversário não somente lhe deu a bênção, mas também mudou-lhe o nome de Jacó para "Israel" (= Forte contra Deus), "pois, dizia, foste forte contra Deus; também dos homens hás de triunfar" (v. 29).

A narrativa é certamente obscura. O profeta Oséias, 12, 4s., identifica o lutador anônimo com um anjo, até mesmo com Deus - o que contribui para tornar mais enigmático o cenário de Gn 32. O resultado da luta também é ambíguo; quem terá vencido? Notemos que o estranho personagem fez as vezes de mais fraco, pedindo ser libertado, mas não deixou de se mostrar superior, mutilando Jacó, dando-lhe a bênção desejada (coisa que só em nome de Deus poder dada) e impondo-lhe novo nome (que era um oráculo profético). Que significa isso tudo?

Os estudiosos contemporâneos dão ao trecho um sentido muito mais nobre e espiritual do que o que, à primeira vista, se lhe poderia atribuir. Ei-lo:

O hagiógrafo ou a tradição israelita teriam recorrido à imagem antropomórfica muito viva para designar uma luta que se passou não fora de Jacó, mas estritamente na consciência deste. O "Suplantador", dizem, depois de várias fraudes, via-se de regresso à casa, sabendo que seu irmão Esaú lhe ia ao encontro com quatrocentos homens; o perigo de morte que então enfrentava o fez cair em si; tomando consciência dos atos injustos que cometera, julgou ter chegado a hora de sofrer o castigo de Deus; o abatimento a que este pensamento o reduziu eqüivalia para ele a uma agonia ou luta. O Patriarca, porém, não morreu nessa crise; ao contrário, conseguir sair da depressão (...) Com efeito, o Senhor lhe deu a saber que o pouparia, embora o pudesse "derrotar"; não o amaldiçoaria, mas, ao contrário, daí por diante, o tornaria "divinamente" forte contra os homens)= "Israel", ou seja, o portador das inabaláveis promessas e bênçãos messiânicas; Jacó, para o futuro, não seria o "Suplantador" que vence por meios fraudulentos, mas aquele que sabe contar com o auxílio de Deus mais do que com a própria habilidade. O defeito deixado na coxa de Israel lembrar-lhe-ia a "impotência" do seu poder humano e a "prepotência" de Deus, que liberalmente outorga a vitória ao indivíduo que Ele escolhe. É o que delicadamente insinua Sb 10,12:

"A Sabedoria outorgou-lhe (a Jacó) o prêmio em árduo combate, a fim de que ele reconhecesse que a piedade é mais poderosa do que tudo".





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